sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Fernando Sernadas

POEMA DE FIM D´ANO
Para o Antonio Damásio

Da integração dos elementos antagónicos
Do som parado entre as notas do dilúvio
De todos os heróis desconhecidos e petrificados
Da lenta perfeição do instante vindouro
Do kairos dilatado sobre o chronos
De tudo isto se faz a utopia
Ferina hora da dilate campina
Em que cessa a festa a ver passar
E do tempo se diz estar quente ou frio
Como em jogo de criança

Avessos os olhos que veem o desfilar do ódio
Avessas as mãos que cerram o amor em concha
E os chocalhos da despedida são anúncios profanos
Como quem estronca a arca bolorenta do bisneto
E estar o mesmo mundo do lado de lá e de cá

O mundo é um conceito sossegante
Mas entra pela mente a comichão
Como humidade através da parede
O mundo é um naco de universo
Desprendido como espirro incontrolável
E a recuperação do fôlego tem sido mais
A dispersão dos estilhaços
Do que a reconstrução do puzzle
Onde todas as peças tem seu lugar
Entregue agora as mãos de criança
Que sorri por entre a luz em cachoeira

ESPINOZA
A filosofia é um campo de certezas de caminhantes em água
Como o vento que junta todas folhas em frente as escadas
E Espinoza fechado em casa as paredes húmidas de caruncho
Os dias escuros e solitários de janela em janela
E a mente acesa dia e noite limando lentes
De quem sopra no vidro a forma e a vida
E emenda a imagem do inimigo na idéia de Deus
Que o filósofo da potência assim vivesse e assim morresse
Entre quatro paredes enlaçado no seu próprio sistema
Essa pura fidelidade à pouca luz da vida
Ao pouco amor dos talhadores da paz e do templo
Que assim se salvasse por uma humildade extrema
E se rendesse não à chacinaria reinante
Mas à morte que sabia não existir
Por ser também a primeira causa

METADES 6
Já das palavras surge a sombra do nada
E todas coisas se diluem na própria forma
Já do som das palavras resta só a chamada
E das casas se pintaram todas paredes
Abafado fica o fonema entre varias camadas

O lugar da história e um largo de guilhotinas
E toda história um apetrecho de produzir silêncio
Um passo isolado nos corredores da mente
Que ninguém diga que se escreve tratados com sangue
Todas janelas foram feitas para
Recortar o voo dos pássaros

METADES 5
Vem nos oráculos que a única dignidade
Nasce da solidão do lado de fora das margens
Quem se defende ofende o opressor
E brota do silêncio a paz do musgo
O mundo é uma mentira em redondo
Certeiro e igual o calor para todos
Mas nem todas as mãos a forma do estalo
Nem todas caras os olhos do avesso
Nem todas pernas do milheiral a fuga
O corpo inteiro é uma arma de fincar pé
A corpo inteiro ninguém fica só

CHAMADA
O maior insulto a chamada de poeta
Podemos dizer pedreiro carpinteiro ladrão
Mas de poeta se abre o alçapão inchado de desprezo
De poeta um vegetal alegre conduzindo motor
Olhos arregalados e cegos perante a vaidade
De quem quer do outro o espelho onde brilhar
Nada mais punhalada que dizer de alguém poeta
Sabendo de antemão que das palavras o campo raso
Tábula escarnecendo pela face o escarro
Escorregando da queda todas estrelas de circo
Nada mais palhaçada que poeta escrevendo
Pelas linhas de deus as tortas sobre a mesa
Papéis de utilidade doméstica de telhas em vendaval
Nada mais que através do poeta o esqueleto afinado
Ossos de guitarrar os fados de todos gargalos vazios
Ossos de vassourar as escavações da minúcia e ausência
Nada mais desaparecido que o poeta a meio vôo
Bando migratório deixando da sombra a parca luz

Fernando Sernadas é um intelectual e poeta português,  radicado no Canadá.

© Fernando Sernadas, 2014
Todos os direitos reservados

By Jane Davies




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