sábado, 15 de fevereiro de 2014

Pedro Nava

EXCERTO DE BEIRA-MAR, MEMÓRIAS 4

Belo Horizonte era uma capital profundamente quieta e bem pensante. Amava o soneto, deleitava-se com sua operazinha em tempos de temporada, acatava o Santo Ofício que censurava por sua conta os filmes, suas moças liam Ardell, Delly, a Bibliothèque de ma Fille, a Collection Rose, não conversavam com rapazes e faziam que acreditavam que as crianças pussavam nas hortas entre pés de couve, raminhos de salsa, serralha, bertalha e talos de taioba. Havia uma literatura oficial. Os discursos de suas excelências eram obras antológicas. “Minas é um coração de ouro num peito de ferro.” “Minas é um povo que se levanta.” “A desopilante Comédia Humana." A Liga pela Moralidade atava e desatava, tinha lugar certo para suas decisões no Minas Gerais — Órgão Oficial dos Poderes do Estado. Era um outro poder do Estado. Os Redentoristas davam a nota com o Padre Severino fazendo milagres. Não ler as inépcias canônicas de O Sino de São José era pecado mortal. O beatério vivia aceso com a criação do Bispado em 1921 e sua instalação à 30 de abril de 1922. A pirâmide estava perfeitamente assentada. Ora, aqueles rapazes desrespeitosos, escrevendo em revistas do Rio e depois de São Paulo, fazendo versos sem rima e sem metro, descobrindo pedras no meio do caminho — só podiam ser uns canalhas. Tudo de malfeito que aparecia lhes era atribuído. Isto é coisa destes filhos da puta dos futuristas — dizia o Raul Franco — como ouvi certa vez. Os escritores, os vates, os pintores, os escultores que tinham o viático do Palácio descascavam em cima da súcia. Além de confusamente tratados de futuristas, éramo-lo também de nefelibatas — expressão exumada dos velhos insultos aos simbolistas e servindo agora para nós que éramos os que andávamos com os pés fora do chão em vez de casqueá-lo solidamente a quatro patas, da Praça da Liberdade ao Bar do Ponto, dando uma paradinha no Conselho Deliberativo (vindo por Bahia) ou no Senado e na Câmara (quem descia João Pinheiro). Pois futuristas e nefelibatas não éramos considerados melhor que os habituês das tascas, os frequentadores dos cabarés, a ralé dum Parque Cinema já inexistente mas conservando seu valor simbólico. Dentro desta onda de hostilidade há que abrir lugar para exceções. Dos literatos da geração anterior éramos entendidos por José Osvaldo, Mário Matos e principalmente por Arduíno Bolivar que está para o Modernismo Mineiro numa posição equivalente à assumida por João Ribeiro com relação ao Modernismo tomado em compacto.

Tínhamos de reagir e como o fazíamos. .. Eram tardes e noites acintosas de bar com cervejadas, anis escarchado, kümmel, conhaque francês, otongim, uísque (um roubo! 5$000 a dose), jantares com vinhaça italiana, portuguesa e francesa. Muita galinha, peru, patos roubados para preparação de ceias na Madame ou judeus no Pedro Sousa, ao Quartel. Andávamos em grupo provocante, rua acima, rua abaixo, rindo na cara dos homens graves, fazendo em tomo deles danças de comedores do Bispo Sardinha, na Sala de Espera do Odeon, aplaudindo a pontaria para cuspir de que era dotado um dos nossos — que escarrava onde queria nos cavalheiros que desciam para a Sessão Fox. Prestem atenção. Vou cuspir na gola daquele. Na manga direita deste. Naquela copa de chapéu. E lá partia a densa ostra que ia estrelar-se exatamente onde nosso amigo tinha prometido. Em caso de suspeita ele seria o último a ser considerado, dentro do seu ar digno de gentil-homem, jeito muito magro, muito aristocrático (não fosse ele de Juiz de Fora) e que quando falava a alguém era na maior seriedade e sempre com urbanidade perfeita. Muitas vezes ele levava seu cinismo ao ponto de ir à vítima. Cavalheiro — cuspiram na sua gola, o senhor permita que eu limpe. E fazia-o com o próprio lenço, sério como um Desembargador da Relação, enquanto o outro desmanchava-se de reconhecimento. E depredávamos. Casas, jardins, logradouros. Na noite da cidade deserta e despoliciada quem? quebrou uma por uma as vidraças consulares do Comendador Avelino Fernandes. Quem? tocava as campainhas, chamava os Redentoristas para irem levar o Santíssimo, os Santos Óleos à Lagoinha, Serra, altos do Cruzeiro, descampados do Calafate — quem? E não havia agonizantes... Destruídas todas as mudas da nova arborização de Goiás. Depredadas as roseiras da Praça da Liberdade. Invadida a propriedade do Senhor Raul Mendes e inutilizadas suas novas enxertias de manga. Vândalos despejam tinta e goma arábica entre as páginas do Livro de Registros de Hóspedes do Grande Hotel. Os estudantes, conduzidos por maus elementos e gente não pertencente à classe, incendeiam bondes. Lembrai-vos? maus elementos estranhos à classe estudantil. Grandes quantidades de solução de ácido sulfídrico e empolas de mercaptã são atiradas no salão do Odeon durante a última Sessão Fox e o odor infecto determina suspensão da projeção e a retirada das famílias indignadas. Quem? assaltava as latarias e reservas alimentícias do bondoso Simeão. E os livros do Alves? Quem? todas as noites trocava de portão as placas do Doutor Borges e do Doutor Lagoeiro e outras, outras e outras — pondo as de engenheiros em casa de médicos, as de advogados em casa de engenheiros, as dos médicos nas casas uns dos outros — sobretudo se os separava o ódio furioso da classe. Quais? os meliantes que arrancaram numa noite, cerca de quarenta placas e foram depositá-las todas na varanda desguardada do Chefe de Polícia. Quem? destruiu as gaiolas de pássaros do agiota Murta. Quem? soltou suas graúnas, seus cardeais, seus curiós, seus canários. E o viveiro de tinhorões, a estufa de begônias do Doutor Gustavo Pena? Quem? espezinhou e pulverizou-lhes as jarras. Quem? Quem? Quem? A Família Mineira ultrajada sabia muito bem bem bem. Mas queríamos mais... Enterremos Delegados. Desacatemos o PRM. O delegado era o Valdemar Loureiro depois de tropelias praticadas à porta do Municipal. Faríamos sua inumação simbólica. Quando íamos atacar a funerária para de lá tirar o caixão chegou o Dr. Pimenta Bueno que nos dissuadiu do propósito. Pois escapamos de boa. Segundo inconfidência do Teixerão, ele próprio polícia amador, o cunhado Valdemar, uma cáfila de secretas e um bando de soldados estavam à nossa espera, armas embaladas, com autorização do bondoso Dr. Júlio Otaviano, Chefe de Polícia, que já se entendera com o Palácio. Podiam atirar. Salvou-nos o acaso de termos atendido as injunções do delegado diplomático. O PRM foi desacatado, logo na pessoa de quem? Do grande, do nosso excelente Dr. Afonso Pena Júnior. Ele falava à porta do Grande Hotel. Os nefelibatas, rentes a ele, interrompiam cada período do seu discurso com um portentoso — Morra! o doutor Afonso Pena Júnior! — soltado a queima-roupa. Ele aguentou firme um, dois, três morras e ao quarto parou para deter a cavalaria que avançava e para responder de cara — que praga de urubu magro não mata cavalo gordo! — ao que retrucamos, já mudados, com um VIVA O DOUTOR AFONSO PENA JÚNIOR! que reboou até o Bar do Ponto. Pazes feitas. Mas queríamos mais... Ateemos fogo a Belo Horizonte. Foi aceso um foguinho por dois que entraram furtivamente no porão das Bevilacqua. O par foi dar uma voltinha na Praça da Liberdade para espairecer o blues. Ao voltarem a Gonçalves Dias, 1.218, verificaram aterrados que o incêndio alastrara e rugia no porão da casa. Os próprios incendiários deram o alarma e misturados à família combateram as chamas. Mas perceberam que eram suspeitados. Desceram arrasados, acordaram o João Pinheiro Filho, pediram palpites, pensaram em fugir para São Paulo mas o conselho do amigo era que fossem dormir e que se fizessem de andré. Ai! dos dois... Logo Belo Horizonte saberia de tudo e o Zegão que tinha culpas no cartório, já no dia seguinte, jantando em casa dos Machado, ouviu o relato da boca indignada de Dona Hilda. Tinham ateado o incêndio e por cúmulo da maldade, debaixo dum fio elétrico para provocarem um curto circuito. Não foi tanto assim, Dona Hilda... Com’é que o senhor sabe? Curto circuito simsenhor! 

[In Beira-Mar, Memórias 4, 3a. ed., Rio de Janeiro, Ed. Nova Fronteira, 1985, pp. 179-181]


Antiga Avenida João Pinheiro
Belo Horizonte - Minas Gerais - Brasil

Um comentário:

Antonio Damásio disse...

Obrigado pela visita. Volte sempre. Entrei em teu blog e gostei muito. Meus parabéns!

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