quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Henrique de Lemos

O olhar pousado na brancura dos álamos  
assola um silêncio
sedento de água.

Alastra pelo corpo a evidência
da pedra, do lume,
desta poeira respirada
rente à erva seca do verão.

Nada pergunto. Curvo-me
e beijo a mão que me oprime:
o amor
dos peixes na escuridão.

*
Corre um rio sob a folhagem do olhar.
O rio desce, frio, como se subisse
ao topo das grandes montanhas em fúria,
desbotando a evidência dos obséquios
escritos nas palmas das folhas caídas –
fulvas e agudas, espadas lacerantes
da aurora, marcas do tempo que nele fluem
únicas nos espaços que percorrem
e nos brilhos que reverberam, espargidas
no mar como ínfimos charcos de azeite.

Quase cego da alva fluorescência do erro,
do desalento contido nas falsas pistas seguidas,
deixando na paisagem vestígios das cores
raras e sinistras da mudança, o rio corre,
incessante: jorro de medo, rumor atroz
linfa terrível, pureza abjecta, cristalina
envolvendo abrolhos com suas bocas
gota a gota, bocas vorazes, velozes,
gotejando, mordendo, erodindo a vida
vertiginosamente,
     buscando o peixe
obscuro, porventura intangível, da liberdade.

*
As palavras duras ficam
indelevelmente
gravadas na memória.

As palavras duras
são ditas com frieza,
com ódio ou com amor,
e sulcam o ar como aves puras.

E porque as palavras duras magoam
profundamente,
parecem mais verdadeiras
e mais injustas.

As palavras duras
deixam-nos a sós connosco,
feridos, a pensar.

As palavras duras são tigres
com garras agudas, tigres ferozes
que nos fazem sangrar.


Henrique de Lemos é Mestre (2012) em Estudos Portugueses pela Faculdade de  Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, onde faz seu doutoramento na mesma área de estudos.   Investigador no Instituto de Estudos de  Literatura Tradicional desde 2013, realizou, dentro dos Estudos Pessoanos, uma  comunicação no Colóquio Internacional Central de Poesia II – Livro do Desassossego:  perspectivas intitulada “O descentramento da prosa do Livro do Desassossego".





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