Quem somos nós, pai? Debaixo do feno, a terra apodrecida, o gosto azedo, o cheiro ruim, quase insuportável. É dali que viemos: do berço infértil, da quentura do solo a gerar vermes. Quando chovia, o cheiro de podridão entrava pela janela vindo da palha de feijão amontoada. A água da chuva não trazia a limpeza., a pureza. Escancarava nossas origens e deixava vazar o fedor dos nossos restos. Nossa origem vem da terra. Mas você a negou. Nos arrancou de lá. As raízes fracas facilitaram a nossa queda. Tombamos para sempre, sem possibilidade de retorno. A tua mão suada arrancou os últimos pés de feijão quando nos jogou na cabine daquele maldito caminhão. Deixamos tudo lá, principalmente nossa história e a certeza de que havia alguma chance. Mesmo criança, tinha certeza de que daria tudo errado em C. Cresci com a certeza da derrota. Quando não havia ninguém (você sempre foi um ausente) para chorar a morte da avó, perguntei: Quem somos nós? Viemos daquele corpo esquelético, desenhado na fumaça do cigarro de palha e na bomba de chimarrão. Na cama do hospital, estava muito parecida conosco: um cadáver à espera de misericórdia. Era impossível o perdão. Melhor carregar o ódio a explodir. Poucas coisas na vida me fizeram tão bem quanto vê-la morrer, secar ao relento, abandonada, cachorro sem dono agonizando esmagado no meio-fio. Cheguei a acreditar em Deus. A mão misericordiosa Dele cumprira a sua vingança contra a inimiga declarada. De nada adianta. Não nos encontraremos mais. Nem ela, nem você estará novamente a minha frente. Ambos estão mortos? Onde está a avó? Onde está você? Onde eu estou?
[In Na Escuridão, amanhã. São Paulo, Cosac Naify, 2013, pp. 31-33]
Sobre Rogério Pereira
By Julien Dupré |
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