sábado, 22 de março de 2014

Eloy Sánchez Rosillo

DAQUI
Esta estranha ladeira pela qual vou descendo
avança entre a névoa. Já não recordo bem
se houve sol matinal na subida,
nem se era aquele cume onde então estive
o exacto centro da luz. Agora
dou passos prudentes; tudo aqui é confuso.
Perdi-me no tempo. Avanço e retrocedo,
e não consigo segurar as formas puras
de existir em que me apoiava
quando era firme o mundo e as coisas tinham
princípio e fim, definição, contornos.
Não existe ontem, nem hoje, nem amanhã.
Em que lugar do tempo se vai estendendo
a bruma que me envolve? O antes é depois,
o que passou não aconteceu, o que ainda
há-de vir talvez ocorra agora.
Quem sou? Quem desde dentro de mim me desconhece?
Fui criança um dia, ou fabulei uma história
Que me ajudasse a viver nos maus momentos?
Entrevejo ao longe um verão
que não teve começo e não termina
(é sempre verão quando rememoro
na obscuridade a luz primeira):
uma casa no campo; brinco junto
da acácia que dá sombra à porta;
minha mãe cose ou lê perto de mim e fita-me
com os olhos mais doces e límpidos
que jamais vi. E de súbito não existem
aquela casa branca, as amendoeiras, a vinha,
as galeras carregadas com sacas de trigo
sob o fulgor de agosto, nem minha mãe
me fita já. Um rapaz escreve num caderno
seus primeiros poemas; é de noite; a lua
entra pela janela do seu quarto;
observai-o a trabalhar: que emoção no seu peito,
como em suas mãos arde a vida que deseja
transpor para o papel. Mas vai chegando
pouco a pouco a aurora à cidade,
e o quarto que tínhamos visto está vazio;
parece que jamais terá estado
nesta habitação aquele adolescente
que escrevia de noite. Uma rapariga passa
perto de mim, e detém-se; seu sorriso,
seus olhos, tão azuis, estão cheios de ilusão. Começamos
a andar por um caminho. Aonde nos leva?
De súbito, passam-se muitos anos.
De onde surge o amor? Quando se extingue?
Um menino está sentado nesse tapete; brinca
com seus brinquedos; grita e bate palmas
ao contemplar a tropa inumerável
de ferozes bonecos que dispôs
ante si em rigorosa formação de combate.
E eu assisto ao milagre da sua infância; rimo-nos
com o riso mais franco, e, abraçados,
pai e filho rolamos pelo chão
enquanto principia lenta, lentamente,
uma manhã de primavera.
Mas num só instante cerrou-se a noite;
crescem as sombras, é inverno, chove,
e não há ninguém em minha casa. Que aconteceu?
Que é feito do menino cujo riso
me unia a uma verdade tão verdadeira?
E o que é feito de mim, das seguras
certezas que me sustinham?
Um estranho habita-me. Nos espelhos vejo
o olhar perplexo, interrogativo,
de um rosto alheio, de alguém que em nada se parece
àquele fui alguma vez. Não sei se estou a sonhar,
não sei se estou desperto, se imagino ou lembro.
Quiçá sonhemos sempre. Vivo na incerteza.
Perdi-me no tempo. Dou passos na névoa,
desço tacteando a ladeira insegura.
Tudo acontece agora depressa, muito depressa;
imagens, acontecimentos, enteléquias,
apagam-se, iluminam-se, vão e vêm.
O que é antes? O que é depois? Quem entretece,
ordena e desordena as horas da minha vida?
A realidade e o sonho e a memória,
onde começam e acabam?

ACASO
Não sei se me é outorgado novamente
o dom de escrever poemas – nunca se chega
a saber se é a verdade ou se é tão-só
o nosso desejo de encontrá-la o que
nos desperta a voz e remexe
as profundezas do coração –, mas deixo
sobre o papel estas palavras que hoje
vêm não sei donde e me aproximam
das coisas do mundo, dos afãs
do meu antigo eu. Tanto tempo
de sombras na minha vida, e de repente
chega outra vez a luz que me redime,
a misericordiosa claridade
que me salva por dentro e concede a meu peito
liberdade e consolo. Abro os olhos
e contemplo. Surge a aurora? Dir-se-ia
que finda a treva. E que amanhece.

A LUZ NÃO TE RECORDA
A luz entra hoje no quarto como
entrava na outra tarde. Mas não
nos encontra aqui juntos de novo: não vieste.
Posso recordar-te.
E recordo-te, sozinho, nesta casa
– agora cheia de nada – que outrora compartilhámos.
As palavras que dissemos, a música, teu riso,
e o que nessas horas entre nós sucedeu,
continuam a viver em mim.
Mas a luz não te recorda, porque
a luz ama o presente. Regressa sem memória
ao aposento vazio. E já não sabe
que se enredou no teu cabelo e brilhou em teus olhos,
que, ao mesmo tempo que minhas mãos minuciosas, percorreu
devagar o teu corpo.
Não, a luz não se recorda
de ter estado aqui, contigo, connosco.
Chega, alegre e dourada,
ao lugar em que ardera a vida naquela tarde.
E unicamente encontra em seu silêncio
um homem recordando, recordando-te:
Um homem triste e derrotado e só.

[In La Vida (1996)]
Tradução de João Albuquerque

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