quarta-feira, 14 de maio de 2014

Ana Luísa Amaral

O SONHO
Vinha de trás, daquela noite
em que escrevera os seus versos mais belos,
depois de ter reunido os conselheiros próximos
e decidido continuar as sementes
que seu pai havia já plantado.
As dunas tinham sido a glosa a romper,
mas, após esses versos,
adormecera sobre a mesa
e sonhara um sonho de mar e marés bonançosas,
cheia de areia branca e arvoredos.

No seu sonho, não havia outra gente:
só a sua.

Munido desse sonho
e da música que ouvira a trovadores,
sempre bem-vindos no seu castelo,
desistira de uma guerra, trocando-a por vilas.
A paz fora firmada,
como as canções que ouvia e que falavam também de paz.

De muito lhe serviu sua mulher,
de flores lendárias no regaço e serventia boa,
como eram então de boa ou má serventia as mulheres
que em silêncio acompanhavam os homens,
fossem eles pequenos ou poderosos.

No sonho, sonhara elmos e cotas de malha,
roupagens de guerra ainda desconhecidas no seu tempo,
mas que de serventia de guerra nada tinham:
só belas e brilhantes.

Vira-os, aos da sua gente,
alguns com barba longa e olhos claros,
chegar em botes a um mar de areia branca.
Os botes tinham sido descidos de navios esguios,
as velas como lenços de cabeça de mulher,
mas imensos e brancos,
desenhados a cruzes.
E os navios do seu sonho
dariam nome a animais delicados
parecidos com nenúfares,
que vogavam à superfície das águas.

Ele vira os olhos da sua gente cheios da cor,
e do céu, e da água transparente dessas praias.
Mas nunca vira no seu sonho
outra gente que não fosse a sua.

Disse quem veio muito depois dele
em seta pelo tempo
que os ramos dos pinheiros e o cheiro a resina
entraram na feitura desses navios,
mas que era feito de carvalho o tabuado do seu casco.

Porém, ele acreditava, porque o sonhara,
que as formas esbeltas e doces
vogando à superfície das águas
levavam no futuro a sua gente
e vinham das sementes pensadas nessa noite.

E, como os quase nenúfares azuis, elas seguiam.

Para a frente e na esteira
dos seus mais belos versos.

[In Vozes, São Paulo, Iluminuras, 2013, pp. 86-87]

By Monet

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