terça-feira, 13 de maio de 2014

Lautréamont

OS CANTOS DE MALDOROR - Excerto do Canto Segundo

"Agarro a pena que vai construir o segundo canto... instrumento arrancado às asas de alguma águia real vermelha! Mas... o que têm meus dedos? As articulações permanecem paralisadas, desde que comecei meu trabalho. No entanto, preciso escrever...É impossível! Pois bem! Repito que preciso escrever meu pensamento; tenho o direito, como qualquer outro, de submeter-me a essa lei natural...Mas não, não, a pena permanece inerte!...Veja, vejam só, através dos campos, o relâmpago que brilha ao longe. A tempestade percorre o espaço. Chove...Chove sempre...Como chove!...O relâmpago explodiu...Abateu-se sobre minha janela entreaberta, e estendeu-me no assoalho, atingindo a testa. Por que esta tempestade, e por que a paralisia dos meus dedos?Será um aviso do alto para me impedir de escrever, e para pensar melhor nisso a que me exponho, ao destilar a baba da minha boca quadrada? Mas essa tempestade não me atemorizou. Que me importaria uma legião de tempestades! Esses agentes da polícia celeste cumprem com zelo seu penoso dever, a julgar sumariamente por minha testa ferida. Nada tenho a agradecer ao Todo Poderoso, por sua notável destreza; ele enviou um raio de modo a cortar precisamente meu rosto em dois, desde a testa, lugar onde a ferida foi mais perigosa: que um outro o felicite! Mas as tempestades atacam alguém mais forte que elas. Assim, pois, horrível Eterno com cara de víbora foi preciso que, não contente por teres colocado minha alma entre as fronteiras da loucura e os pensamentos de furor que matam com lentidão, tenhas acreditado, além disso, ser mais conveniente a tua majestade, depois de um maduro exame, fazer que saísse da minha testa uma taça de sangue!... Mas, enfim, quem se queixa? Sabes que não te amo, e que, ao contrário, te odeio; porque insistes: Quando teu comportamento deixará de envolver nas aparências da extravagância? Fala-me com franqueza, como a um amigo: não desconfias que estás a mostrar nessa perseguição odiosa, uma precipitação ingênua, cujo ridículo nenhum dos teus serafins ousaria por em evidência? Que cólera toma conta de ti? Fica sabendo que, se me deixasses viver a salvo de tuas perseguições, meu reconhecimento te pertenceria... Vamos, Sultão, com tua língua, livra-me desse sangue que suja o assoalho. O curativo está pronto; minha testa, estancada, foi lavada com água salgada, e enrolei ataduras através do meu rosto. O resultado não é infinito: quatro camisas cheias de sangue e dois lenços. Ninguém acreditaria, à primeira vista, que Maldoror contivesse tanto sangue em suas artérias; pois em seu rosto apenas brilham os reflexos de cadáver. Mas, enfim, é isso. Talvez tenha sido quase todo o sangue que seu corpo pudesse conter, e é provável que não tenha sobrado muito. Basta, basta, cão ávido; deixa o assoalho como está; tens a barriga cheia. Não deves continuar a beber, pois logo vomitarás. Estás devidamente saciado, vai te deitar em teu canil; faz de contas que nadas na felicidade: pois não pensarás na fome durante três dias imensos, graças aos glóbulos que fizeste descer por tua goela com uma satisfação solenemente visível. Tu, Léman, pega uma vassoura; eu também gostaria de pegar uma, mas faltam-me as forças. Compreendes, não é, que me faltem as forças? Guarda tuas lágrimas na bainha; ou então, não acreditarei que tenhas a coragem de contemplar, a sangue frio, a grade cutilada, ocasionada por um suplício que para mim já está perdido na noite dos tempos passados. Irás à fonte, apanhar dois baldes d´água. Lavado o chão, guardarás esses panos no quarto ao lado. Se a lavadeira retornar esta tarde, como deverá fazê-lo, tu os entregarás a ela; mas como chove muito, já faz uma hora, e continuará a chover, não creio que ela vá sair de casa; então, virá amanhã pela manhã. Se te perguntar de onde veio tanto sangue, não tens a obrigação de responder-lhe. Ó! como estou fraco! Não importa; ainda terei forças para erguer a caneta, e a coragem de escavar em meu pensamento. O que deu no Criador, para atormentar-me, como se eu fosse uma criança, com uma tempestade que carrega o relâmpago: Nem por isso persisto menos em minha resolução de escrever. Estas ataduras me incomodam, e a atmosfera do meu quarto recende a sangue..."

[In Os cantos de Maldoror Poesias Cartas, Tradução, prefácio e notas de Cláudio Willer,  2a. ed. rev. e ampl., São Paulo: Iluminuras, 2005, pp. 109-111]



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