sábado, 4 de outubro de 2014

Adélia Prado

EU QUERO SABER SEMPRE quem é maior, quem é menor. "Senhor, meus frades foram chamados de menores para não desejarem ser maiores... Pai, eu te suplico, que eles não sejam mais soberbos que pobres, que não sejam insolentes contra os outros, que de maneira alguma permitas que sejam promovidos a prelaturas" (disse São Francisco ao cardeal Hugolino, que quis conferir prelaturas aos frades menores). Eu gosto, gosto não, amo por amor de Deus um sujeito pretensioso que escreve coisas assim: "Em nossas despretensiosas considerações de hoje vamos fazer um efêmero estudo sobre o início da arte dramática. Voltamos a considerá-la, para situá-la e melhor condicioná-la e conotar ainda mais sua radical"...  Ó meus Deus, eu posso dar umas chicotadazinhas nestes vendilhões do templo? Me dá o direito de sentir ódio. Eu não sou bom. Eu gosto de fofoca. De fato, ardo por saber quem está passeando com a Nica do Gomes. Imagino a Nica, com a casa cheia de moças, toda vida fazendo pastel pra fora, na maior compostura, resolveu por chifre no Gomes, coitado do panaca. Olha que eu vivo dilacerada (corto dilacerada, palavra bonita), olha como que eu vivo esbodegada de tanto bater com a cabeça. De um lado o que eu quero: me tornar ALTER FRANCISCUS. Não é ALTER CLARA ou ALTER THERESA, não, é FRANCISCO mesmo. De outro: sonhei com uma cobra escondida numa moitinha de trevo que me picou dois dedos, com muita dor. Tou louca pra telefonar pra minha amiga pra ela me interpretar se é traição. Se for, ótimo: alguém, por me julgar importante e no auge do sucesso, quer me prejudicar. Ô glória! Tou com tanta raiva (Francisco não quis se tornar Francisco. Francisco quis se tornar Cristo. Há um equívoco da minha parte? Há.) que anunciei esta manhã pra ferir meus amados: Vou queimar toda a crítica sobre meus textos. Que me importa? Que se lixem. Que se danem. Que se arrebente tudo. (De puro orgulho eu queria ser pobre.) A banalidade, o mais absoluto anonimato, comprar quiabo na feira com as pernas cheias de varizes, ninguém me olhando nem uma primeira vez. O filete de capim tá nascendo debaixo da pedra. Vai dar, na estação, sua flor dura e cinzenta, sem ninguém saber. Me chamam de humilde: ah! ah! ah! eu não sou não. Me chamam de orgulhosa:  ali!  ah!  ah!  também não.  Ouvi bem: fingidora? Não. Sou pecadora. Quero brilhar. Estou possuída da tentação do sucesso, do mais absoluto e trágico sucesso. Quero um sucesso trágico. Por isso leio as resenhas dominicais sobre minha obra. Obra? (A obra na latinha para exame?) E digo aos criados: ponham na cesta, vendam ao papel velho, se quiserem. "A simplicidade é aquela que em todas as leis divinas deixa para os que vão perecer toda verbosidade, ostentação e preciosidade, enfeites e curiosidade, e vai atrás da medula e não da casca, do conteúdo e não do continente" (escritos de São Francisco). O zumbido no meu ouvido é do meu próprio aplauso? Para glória de Deus, Satanás me envergonha. Me chama Satanasa, Ratazana, Malafama. Como uma ferida em seu auge, o pus fervendo, as bordas avermelhadas, as cascas se formando. Má. Ruim. Capaz de dar a vida? Dou. Dou? Já dei uma vez. "Simplicidade quer dizer Sinceridade." O que sou? Indigesta. O que fiz bem, só pela graça o fiz. Em alto e ótimo som repito: SÓ PELA GRAÇA O FIZ. Ó Francisco,  meu pai, esposo da pobreza, pára de me amolar nesta hora paratecnológica. Eu pergunto: tem vida em Marte? Você responde: "A simplicidade não acha que as melhores glórias são as da cultura e por isso prefere fazer e não aprender ou ensinar". Eu sou filha do meu pai, eu gosto, no amor, do arrebatamento do amor, o Cântico dos Cânticos. Francisco, quero ficar em transe como você, a dois metros do chão, os olhos vidrados de tanto amor, no sol, na chuva,  no tempo. "Sai do tempo, menina, você apanha defruço no sereno", falava meu pai que falava: "A palavra raca está no Evangelho e quer dizer bobo. Chamar o irmão de bobo é crime!" E toda a sua vasta estrutura amedrontava-se, porque ele xingara o irmão de filho de sua mãe. Oh, desestruturo-me também. "Sabedor de seus distúrbios do baço e do estômago, um guardião, para protegê-lo do frio, mandara costurar uma pele de raposa por baixo de seu hábito. Francisco quis por outra também, pelo lado de fora, para não esconder ao povo o cuidado que tinha para consigo mesmo" (Celano, na Vida de São Francisco). Eu, querido pai, quero um vestido feito com as águas do mar e os peixinhos nadando, quero um vestido de noite com as estrelas e a lua, um vestido tão belíssimo que choro choro e choro porque o vestido existe e eu não tenho ele. Ou este, ou um vestido de saco de farinha de trigo. Posso? Não posso. "Francisco escolheu frei João, o simples, como seu irmão preferido, graças a sua simplicidade, embora em certo ponto o santo tivesse que intervir para proibi-lo de levar essa virtude a limites indiscretos" (Celano). A mulher com varizes compra quiabos na feira. Ninguém vê. A mulher põe seu vestido de malha sintética e vai dar aulas de Moral e Cívica. Ninguém vê. Recorta do jornal cheia de alegria a criticazinha do seu livro e vai pregar no caderninho de recortes. Ninguém vê, mas a alegria sobre as coisas garante que elas estão perdoadas. "Irmãos, irmãos! O Senhor me chamou pelo caminho da simplicidade e me mostrou o caminho da simplicidade" (frase de frei Leão citada por A. Clareno, Expositio regulae, cap. 10, Ed. Oliger, Acl Claras Aquas 1972, 210).

[In Solte os Cachorros, in Prosa Reunida, São Paulo, Siciliano, 1999, pp. 48-50]

El Greco - São Francisco em Meditação




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