segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Adriana Lisboa

DEPOIS DE UM LONGO DIA DE TRABALHO 
para Claudia Roquette-Pinto 
O panteão tibetano
em suas molduras de brocados
e na janela uma bandeja:
pedaços de ossos e frutas para
os pássaros. Vejo você
outra vez doméstica,
apaziguada - disseram certa vez: é
como tirar os sapatos depois de um
longo dia de trabalho.
Você toca a testa no chão
e a umidade dos olhos comprova
o que sua voz agora doce entoa
numa língua que não compreendo.
Tenho a impressão de que
as paredes se curvam numa
mesura quase imperceptível. Tenho
a impressão de que lá fora as folhas
do outono, festivas, esvoaçam
também por isso.

A MANHÃ INTEIRA
para Mariana Ianelli
A manhã inteira e nenhum trabalho que preste.
O mundo respirando quieto
no pulmão da neve tardia.
Você queria que as palavras
fossem simples e poucas,
os objetos ao seu redor simples e poucos,
a fome abrandável por um pedaço
de pão. Queria a mansidão
das folhas ainda meninas
tapadas pela neve, sem susto.
Ali, esperando. Ali, quietas, meditativas,
livres até mesmo da crença
de que mais tarde voltarão a brotar.

CACHORRO DEITADO NA NEVE
Diz ali que foi eleito
o quadro preferido dos visitantes do museu
A cidade é Frankfurt, o artista
é Franz Marc e o dia
é uma coleção de horas a
transpor, a passar a perder
de vista. As calçadas também sentem
frio, acho, e todos os passantes
devem ter os pés doloridos.
Mas o que será que guarda
em seu coração de tela o cachorro, esse cachorro alourado
ressonando expressionista sobre a neve,
será que ele dorme em alemão?
Será que ele suspeita como percute
este coração humano
que passa diante dele, igualmente
manso, aguardando o degelo,
o pulo, o verão?

ANIMAIS DELICADOS
Claro que não têm a menor importância
as tardes nubladas. O comentário serve para
tirar da palavra a trava
de proteção. Tanto que depois
falamos de Hermann Hesse,
universos paralelos, Edward Bernays.
Falamos dos caras que querem saber
se suas garotas tiveram orgasmos múltiplos
e quantos exatamente
pois essa é a medida de sua (deles) adequação.
Falamos do quadro que você pintou
inspirado no filme. Mencionamos
esta nossa fé torta, exonerado o dogma.
Numa revelação ao revés,
fica acertado que seremos tenazes antes
da extinção, como o leopardo-de-zanzibar
e o lobo-da-tasmânia. Aliás:
como se enganam os passantes
acreditando, pelo tom da nossa voz,
que somos animais delicados.

[In Parte da Paisagem, São Paulo: Iluminuras, 2014]

José Castelo: O Manto de Adriana



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