sábado, 11 de outubro de 2014

Cláudia Roquette Pinto

O DIA INTEIRO

O dia inteiro perseguindo uma ideia:
vagalumes tontos contra a teia
das especulações, e nenhuma
floração, nem ao menos
um botão incipiente
no recorte da janela
empresta foco ao hipotético jardim.
Longe daqui, de mim
(mais para dentro)
desço no poço de silêncio
que em gerúndio vara madrugadas
ora branco (como lábios de espanto)
ora negro (como cego, como
medo atado à garganta)
segura apenas por um fio, frágil e físsil,
ínfimo ao infinito,
mínimo onde o superlativo esbarra
e é tudo de que disponho
até dispensar o sonho de um chão provável
até que meus pés se cravem
no rosto desta última flor.



DE MÃOS POSTAS

De mãos postas o louva-a-deus ora,
monge de primeira hora,
longe do coro das cigarras
enquanto a tarde esbarra
na noite e, ombro a ombro,
lutam o claro e a sombra
até que, pesada, vence
a escuridão.
O lago, mais que um vago
parêntese aberto na mata
é a nata de um pensamento
que, lento e lento, se formula
na superfície nula da mente
(inversamente ao que se deu
naquele primeiro dia
quando o rosto do homem abria
em precipício, sobre deus).



POR QUE VOCÊ ME ABANDONA

                        à poesia

Por que você me abandona
no vértice da vertigem
quando a chuva cai (um Magritte)
sobre rosas que desistiram?
Por que novamente me perco
entre hortênsias, no aclive,
mais altas que homens, mais vivas
que o Exército de Terracota?
Sem você eu caminho no plano,
tudo escorre
— há um silêncio aturdido
uma cota do que morre
por dentro daquilo que brota.
Sem a sua luz, o que me resta?
Palmilhar às cegas
um quarto de veludo
onde o espelho, mudo, assiste
à fuga do que reflete.



A SERRA

A serra elétrica das cigarras parou.
Tão de repente que o dia,
que ela partia em dois,
num estalo deitou ao chão suas metades.
Ficou só esta poça de silêncio,
indiferente,
e um tremor de alfinetes ardendo
dentro da caixa
de onde se abre o quem.

                  De Corola (2001)



SÍTIO

O morro está pegando fogo.
O ar incômodo, grosso,
faz do menor movimento um esforço,
como andar sob outra atmosfera,
entre panos úmidos, mudos,
num caldo sujo de claras em neve.
Os carros, no viaduto,
engatam sua centopéia:
olhos acesos, suor de diesel,
ruído motor, desespero surdo.
O sol devia estar se pondo, agora
― mas como confirmar sua trajetória
debaixo desta cúpula de pó,
este céu invertido?
Olhar o mar não traz nenhum consolo
(se ele é um cachorro imenso, trêmulo,
vomitando uma espuma de bile,
e vem acabar de morrer na nossa porta).
Uma penugem antagonista
deitou nas folhas dos crisântemos
e vai escurecendo, dia-a-dia,
os olhos das margaridas,
o coração das rosas.
De madrugada,
muda na caixa refrigerada,
a carga de agulhas cai queimando
tímpanos, pálpebras:
O menino brincando na varanda.
Dizem que ele não percebeu.
De outro modo poderia ainda
ter virado o rosto: "Pai!
acho que um bicho me mordeu!" assim
que a bala varou sua cabeça?



EM SARAJEVO

Na primeira foto ela ri,
selvagem,
e se mistura às amigas.
Um ano mais tarde,
posa com as mãos no colo,
coluna reta,
os pés cruzados pra trás.
Por dentro do uniforme pressente
uma mulher, a passos largos,
galgando as ruas de grandes cidades
— quem sabe no exterior.
Quando a vi, ali, distraída,
na escada do ônibus escolar,
nada me preparou para suas pernas abertas,
no meio a flor dilacerada
repetindo, entre as coxas,
o buraco da bala no peito:
um dois pontos insólito.



POEMA DE ANIVERSÁRIO

Sozinha — esplendidamente —
com a fotografia do engano
emoldurada em branco na parede
— paisagem a ser visitada todo santo dia;
com a lantejoula de prata
e a bolsa de madrepérola
pendendo, em plena tolice, do cabide
(filigranas para o adorno
dessa mulher-de-ninguém)
ela acorda entre os lençóis doloridos
por várias ausências, superpostas,
enquanto no sonho
o quase-toque das bocas
que o gongo do telefone
vem, habilmente, cortar.
Intrépida, exposta
ao vento e ao sol a pele
que, antes, o metal do penhor recobria.
Sozinha do lado de fora
(por dentro a própria mão sustenta,
ainda trêmulo,
o coração partido).

(Margem de Maobra, 2005)

Fonte: algumapoesia.com.br

SOBRE CLÁUDIA ROQUETTE PINTO

website da autora

Magritte


2 comentários:

Ricardo Mainieri disse...

Versos como estes, dispensam falar de Cláudia Roquete Pinto:
"A serra elétrica das cigarras parou.
Tão de repente que o dia,
que ela partia em dois,
num estalo deitou ao chão suas metades."

Primorosa!

Tive a honra de participar de um livro, editado em Portugal, em 2004, chamado Poezz, poesia e jazz, na qual ela e outros excelentes poetas faziam parte.

Antonio Damásio disse...

Ricardo, Cláudia R. Pinto é, realmente, uma grande poeta. Obrigado pela visita!!! Abraço.

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