A POÉTICA DO ESCASSO
Viste, através da chama de uma vela,
manhãs mais belas que em qualquer janela.
Mapas, postais mandaste, sem selar,
a todos os cometas, Bachelard.
Alguns poucos chegaram ao destino
ainda quentes, sob o sol a pino
(quando o verso em pânico de Murilo
queimava os que não quiseram ouvi-lo).
Outros se perderam, de parte a parte,
para que fome alguma então te farte.
Palavras, medos, nuvens são matérias
para escavar, do asfalto, tuas férias.
De teu dicionário pululam ventos
que multiplicam os quatro elementos.
Multiplicam pela raiz quadrada
de um número vivo, entre o ser e o nada
(quando o dia que surge é quarta-feira
e o sabemos igual, queira ou não queira,
quando a roupa da infância, já lavada,
inda guarda a lição que nos enfada
quando, para atar os quatro elementos,
esqueceste um acento nos assentos,
quando não viste, na luz de uma vela,
nada que não fosse incenso ou janela).
[A poética do escasso, livro editado em
A soleira e o século (2002)]
QUINTO MIRANTE
A quem doar essa manhã? A quem?
E essas corolas rubras, esse sal
de muitas e muitas chuvas, desdém
que fere de encantos o céu final?
A quem doar essa manhã? Sim, ponde
aqui a vossa enorme tribulação.
Ninguém sabe o que ocorreu. Quando? Onde?
E é preciso que a tudo digais não.
Dentro de cada espanto vós coubestes.
Em cada aposento, em cada sudário
fazeis de fezes vossas próprias vestes.
A quem doar essa manhã? É vário
o sol que aniquila os vossos ciprestes
e corre os vossos rios ao contrário.
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