sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Ana Luísa Amaral

EPÍLOGO
Esta história podia não ter fim.
Bem sei que diz de lagos e de chuva
E o seu final se fecha com a chuva
Caindo sobre o lago.
Mas mesmo assim podia não ter fim.

E se continuasse, então que fosse
Um fim feliz, uma segunda história,
Espécie de coisa bela e irmanada
Sem amor decaindo e onde as duas
Se encontrassem por fim num terceiro país.

Por exemplo, o Japão. Agrada-me o Japão
Nesta minha função de contadora,
Pelo tom improvável e exótico.
Que seja no Japão o seu encontro.
Imaginemos pois uma viagem.

Vindas de lugares extremos,
Alguns anos depois
E o pequeno amor à sua volta ainda.
Vulneráveis ainda. E em silêncio.

A filha fôra despedir-se deles ao aeroporto. Ao olhá-la, pensou como o cabelo já não era tão louro como antes, mas de um tom castanho. Clarinho ainda, a dar-se bem com os olhos azuis. A filha abraçou-a, pedindo «Volta depressa, mãe. E telefona.» Eram sempre assim as despedidas. Ela tentando não chorar e no último momento desfazendo-se em lágrimas, ele mais sóbrio, contrariando-lhe a compra do tabaco «Não vais fumar isso tudo, com certeza.»

Sempre assim fôra. Ele cultivando o sensato e a segurança, como estar um pouco antes da hora marcada no aeroporto ou entrar no comboio meia hora antes, ela amando o prazer de esperar pela última chamada, o tempo misturado, o imprevisto.

Fez-lhe a vontade e foram dos primeiros a entrar no avião, e a viagem era dele: um curso necessário no Japão. Sentiu medo, como sempre, do avião a levantar. E se não levantasse, e o chão ainda ali, as chamas envolvendo o avião, e a morte. Mas eram tão iguais as coisas todas e tão pouco provável o acidente, que o avião levantou de facto e os ouvidos dela ressentiram-se. Como sempre. O costume.

A conversa, o costume, que nem merece honras de página ou de linhas. Foi bonita a chegada ao fim da tarde, o avião pousando realmente e os ouvidos dela uma vez mais. O costume. Como a chegada ao hotel, o desfazer das malas, a pequena ronda de reconhecimento tão do gosto dele e o fazerem amor como o costume. As lágrimas nos olhos dela, que ele não viu, porque tinha a cabeça no seu ombro e no silêncio escuro as lágrimas são cópias de pérolas pequenas.

Depois, a ida cedo para a cama, que o curso a começar de manhãzinha assim o exigia. E ela fechada na casa de banho a chorar um pouco, pensando em anos antes, na primeira história em que as três da manhã eram o génesis de tudo. E, no dia seguinte, a desejar-lhe boa sorte para o primeiro dia e ele a dizer-lhe «até logo, e não te esqueças, vê lá, do pequeno-almoço».
Sozinha no quarto, pouco lhe interessava o pequeno- almoço. Um país diferente como o outro há alguns anos, mas a mesma língua em que o léxico idêntico e comum era dos dois. Nada de províncias de palavras importando mais do que dizer: aqui, as palavras eram só palavras como adeus até logo e não te esqueças vê lá do pequeno-almoço.

Não te esqueças de mim. Vou sentir a tua falta. Tanto. Numa língua diferente há alguns anos. O pequeno amor sempre rondando, sempre perto nas cartas - por favor, escreve, querendo dizer apesar da distância, amo-te sempre, e apesar do beijo que não houve, mas houve sem lábios. Saiu.

Eram ruas diferentes
Como é suposto assim ser no Japão.
E tanta gente, cidades povoadas E de cultura tanta e tão diferente.
Imaginemos, pois,
Que do extremo lugar ao que era o dela, A outra também vinha, uma lua maior Como a lua anterior de há tantos anos.
E as quatro da manhã a recordá-las.

[Excerto de Ara, Porto, Sextante Editora, 2013, p. 57-59].

(ARA recebeu o prêmio PEN clube português 2013, na categoria narrativa). 














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