quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Anna Akhmátova

NOITE
(Viétcher)
São Petersburgo, 1912

La fleur des vignes pousse, et j’ai vingt ans ce soir
André Theuriet

LENDO HAMLET
I
No cemitério, à direita, cobriu-se o túmulo de pó
e, por trás dele, brotou um rio azul.
Tu me disseste: “Então
vai para o convento
ou casa-te com um idiota...”
Só os príncipes falam sempre assim.
Mas eu me lembro dessas palavras:
deixem que elas flutuem por cem séculos
como um manto de arminho jogado sobre os meus
[ombros.

II
E como por engano
eu disse: “Tu...”
Iluminou-se a sombra com o sorriso
suave de meu amado.
Esse é o tipo de deslize da língua
que faz com que todo mundo fique te olhando...
Mas eu te amo, como quarenta
meigas irmãs.

1909
Kiev 

O REI DE OLHOS CINZENTOS
Glória a ti, inconsolável dor!
Ontem morreu o rei de olhos cinzentos.

A noite de outono era rubra e quente.
Meu marido, ao voltar, disse baixinho:

“Sabe, trouxeram-no da caçada,
acharam o corpo lá no velho carvalho.

Que pena da rainha. Tão jovem!...
Numa noite só ficou grisalha.”

Pegou o seu cachimbo na lareira
e lá se foi ele pro trabalho noturno.

Agora vou acordar minha filhinha
e olhar para seus olhinhos cinzentos.

Na janela, o álamo murmura:
“Teu rei já não é mais deste mundo”.

11/12/1910 
Tsárskoie Seló

Apertei as mãos sob o xale escuro...
“Por que estás tão pálida?”
- Porque hoje lhe dei a beber amargura
até que ele foi embora daqui embriagado.

Posso acaso esquecê-lo? Saiu daqui cambaleando,
sua boca torcendo-se dolorosamente...
Desci correndo, sem nem me encostar no corrimão,
corri atrás dele até o portão.

Angustiada gritei: “Tudo não passou
de uma brincadeira. Se fores embora, morro”.

Sorriu docemente e, com um muxoxo terrível,

disse-me: “Não fique no vento”.

8/1/1911
Kiev

[In ANTOLOGIA POÉTICA, Seleção, tradução, apresentação e notas de Lauro Machado Coelho, Porto Alegre: L&PM, 2014, pp. 54-56]

SOBRE ANNA AKHMÁTOVA





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