sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Edmond Jabès

A  SOLIDÃO COMO ESPAÇO PARA A ESCRITURA

 “A aurora é uma gigantesca fogueira de livros.
Grandioso espetáculo do supremo saber destronado.
O amanhecer, então, é virgem”.

O ato de escrever é um ato solitário.

A escritura é  a expressão desta solidão?

Pode haver escritura sem solidão ou solidão sem escritura?
Haverá graus de solidão - assim como existem muitas praias, diferentes níveis de solidão - como há  intensidades da sombra ou da luz?

Poder-se-á, neste caso, sustentar  que há certas solidões dedicadas à noite e  outras ao dia?

Haverá, enfim,  várias formas de solidão: solidão resplandecente, redonda- como a do  sol - ou solidão plana, tenebrosa - como aquela das lápides; solidão da festa e a solidão do luto?

A solidão não se pode dizer,  a não ser que se pare imediatamente de existir.
Ela não pode ser escrita  sem a distância que a protege do olho que a lê.

O dizer será para o texto o que é a palavra oral  para a palavra escrita: o fim de uma solidão assumida para uma e o prelúdio de uma aventura solitária para a outro.
Quem fala em voz alta nunca está sozinho.O escritor reúne, pela intermediação da palavra, sua solidão.

Quem ousa,  no meio das areias, fazer uso da  palavra? O deserto só responde ao grito, o último, já envolto em silêncio do qual emergirá o sinal; porque ele jamais escreve senão os confins imprecisos do ser. Tomar consciência deste limite é, ao mesmo tempo, reconhecer como ponto de partida do que foi escrito, a linha irregular de demarcação de nossa solidão. Haverá então, bem como, pela solidão e pela escrita, fronteiras flutuantes que seguiremos,  a caneta na mão; fronteiras reconhecidas por nós e graças a nós.

A cada livro,  seus antros de solidão.

Sete paraísos reivindicam o céu.  O vazio tem suas etapas. Assim,  a solidão,  vazio do céu e da terra é o vazio do homem dentro do qual ele se agita e respira. Ligada à origem de tudo, a solidão em seu poder excepcional de romper o tempo, de limpar a unidade primeira; de fazer, de qualquer modo, o múltiplo indeterminado, o inominável.

Tentar escrever, nestas condições, consistirá,  então,  na margem da escrita, em refazer pela primeira vez, mas em  direção oposta, o caminho seguido pelo pensamento; a escrita, na palavra que a abrangia; seria, em suma, sair de sua própria solidão para esposar  a solidão inicial do livro na ignorância  de seu início e na qual o livro procurará seu nome; porque é sobre as ruínas de um livro, do qual se afasta, que o livro se constrói;  sobre a aterradora solidão de suas ruínas.

O escritor nunca abandona o livro. Cresce e cai  ao seu lado.   Escrever,  em primeira instância, seria apenas recolher as pedras  do livro desabado para construir uma nova obra - a mesma, sem  dúvida-; edifício onde o escritor será o infatigável mestre da obra: arquiteto e pedreiro; menos atencioso,  no entanto,  ao progresso da sua construção do que ao movimento interno, natural que preside sua conclusão; atento, sobretudo,  para escrever esta dupla solidão - a da palavra e a do  livro- que será progressivamente legível.

Em nenhum lugar  que não seja este retângulo de papel fino reservado ao indizível,  palavras e lugar tão fortemente integrados um ao outro e, ao mesmo tempo - oh paradoxo - tão remotas; porque nenhuma aliança é permitida à solidão, não há união ou associação; não há esperança de libertação comum.

Sozinha, ela se constrói,  é construída; sozinha, com a cumplicidade da escrita, organiza a lição dos orgulhosos cartazes dos tempos de seu esplendor ou de suas largas e profundas feridas, no momento em que a trabalho que ela coloca de pé, se torna túmulo empoeirado; onde o livro se parte na fratura infinita de suas palavras. Solidão à qual o escritor se submete; às vezes, dando mais do que tem, sem poder escapar  do compromisso com ela.

Mas por quê? A solidão não é uma escolha deliberada do homem? Então, quais são suas cadeias que ninguém forjou? Haverá, então,  uma solidão que escapa à sua vontade, que não possa, impotente, superar?

A demanda desta solidão da qual o escritor não será libertado é, precisamente, aquela que a palavra que a designa lha impõe; solidão do inconsciente de sua solidão, como se houvesse uma solidão mais solitária,  enterrada dentro da solidão, onde a palavra modela a imagem captada de si mesma, como uma criança no ventre materno.   

Doravante, tudo será organizado conforme uma ordem preestabelecida: porque o projeto do livro é, primeiramente, um  projeto audacioso da palavra. Não se pode escrever  o livro sem ter participado indiretamente deste projeto que será, talvez, mais do que a intuição que tivemos do livro, a partir daquilo que está escrito.

Solidão, então,  de uma palavra, solidão da palavra diante a palavra,  da noite ante a noite na qual, astro submerso, a palavra  brilha mais do que a solidão.

Mas, poder-te-ão objetar, como se pode, a partir do livro, ir-se à palavra? – Como dia vai ao sol, responderei. Livro não é uma palavra? Sempre retornaremos à palavra “livro”. O espaço do livro é aquele, interior, da palavra que o designa. Escrever o livro não será mais que designar este espaço oculto, que escrever dentro desta palavra.

Contudo,  esta palavra que reúne todas as palavras da língua - como a estrela da manhã reúne toda a luz do mundo - não é o lugar de sua solidão; o lugar onde ela se confronta com a nulidade; onde deixa de significar, onde não designa Nada.

"Você não pode ler  o que viu, mas pode viver o que  leu," ele disse.

-Quantas páginas tem seu livro?

-Exatamente noventa e seis superfícies planas de solidão. Uma ao lado da outra. A primeira na parte de cima e a última na base. Esta é a rota da escrita - ele respondeu.

E acrescenta: "O que me intriga não é, de forma alguma, ter descido, de folha em folha, todos os degraus do livro, mas saber como fiz para me encontrar, desde o início, sobre o mais alto, o primeiro”?

O fundo da água está cheio de estrelas.

A escrita é um desafio da solidão; fluxo e refluxo de inquietação. Ela é sempre o reflexo de uma realidade que se manifesta em sua nova origem e onde, no coração de nossos desejos confusos e de nossas dúvidas, nós temos sua imagem.

(Edmond Jabès, Le petit livre de la subversion hors de soupçon, en Anthologie de la poésie francaise du XXe siécle, Editions Gallimard, 2000). 

[Tradução de Antonio Damásio Rêgo Filho e Margarida Moura]

By Jean-Jacques Henner

Nenhum comentário:

Rosa Alice Branco

  A Árvore da Sombra A árvore da sombra tem as folhas nuas como a própria árvore ao meio-dia quando se finca à terra e espera co...