quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

Yannis Ritsos


A CANÇÃO DE MINHA IRMÃ
(fragmento)


Irmã,
eu não sou mais poeta,
não suporto ser poeta.
Sou uma formiga estropiada
que perdeu seu caminho
dentro da noite imensa.
Revolvo as cinzas
dos incêndios de abril
sem achar uma chispa
com que acender a velha estufa.
Pesaste
os tesouros dos séculos
na tua palma minúscula.
Demoliste as montanhas
onde os poetas repousavam.
Eu não sou mais poeta.
Bem sei:
os poetas
não turvam com lágrimas
as cidades de cristal.
Velam,
com o seu olhar imperturbável,
para medir
as palpitações da luz
e os tremores do universo
Eu, porém,
velo, irmã,
para medir os teus tremores,
a tua respiração.
Torre noturna, apoio-me
ao estrondo inconcebível
dos raios que se cruzam
e, resoluto, toco-lhe as espadas.
Os arcos de luz tombaram
sob tuas pálpebras.
Nada mais vive
fora do círculo lúgubre
que teus olhos cavaram na criação.
Não quero
que os tambores do triunfo
anunciem minha glória
nos bosques primaveris.
O teu sorriso
me basta.
A fonte dos teus olhos
pode matar-me a sede
e fazer minha vida reflorir.

SINFONIA DE PRIMAVERA
(fragmento)


Fecho as pálpebras
sob a noite tranquila
e ouço miríades de astros cantarem
ali onde os teus dedos correram
pela minha carne.
Sou
o céu estrelado
de verão.

Tão belo e tão profundo
tão grande me tornei
pelo teu amor
que já não consegues mais
abraçar-me.

Amada
vamos partilhar
o dom que me trouxeste.
Vê: o bosque se curva
ao peso de suas flores e de suas folhas.


MEDO DA VIDA

Dia de pedra
sol de pedra
silêncio de pedra

Morreram os cavalos na montanha
morreram as árvores na cal
tu não morreste

O som de seus cascos ao longe
o som do velho ofego
dentro do meio-dia marmóreo

E o medo de que talvez não tenhas morrido
e o medo da água que irá correr
o medo, a água, a respiração — vida.

(De Notas à margem do tempo [Simeióseis stà
Perithória toü Xrônou], 1938-1941)


O MORRO

Alguém tinha muitos mortos.
Cavou o chão e os enterrou sozinho.
Pedra por pedra, torrão por torrão,
ergueu um morro.
Sobre o morro
construiu a sua cabana voltada para o sol.

Depois traçou ruelas
plantou árvores
cuidadosa, geométrica, meditadamente.
Seus olhos sorriam.
Suas mãos não tremiam quase.
O morro.

Por ele subiam nas tardes de domingo
as mães empurrando seus carrinhos de bebê
e os trabalhadores da redondeza, de camisa limpa,
que vinham tomar um pouco de sol, respirar um pouco
de ar.
Ali os casais de namorados, de noitinha,
passeavam e aprendiam a ler os astros.
Debaixo das árvores um menino tocava a sua gaita de
boca.

O vendedor de refrescos anunciava suas gasosas.

O alto do morro, todos o sabiam,
estava mais perto do céu.

Ninguém sabia, porém, como nascera o morro
ninguém sabia quantos dormiam nas entranhas do morro.

[Idem]


O SIGNIFICADO DA SIMPLICIDADE

Escondo-me atrás das coisas simples para que vocês me
encontrem;

se não me encontrarem, hão de achar as coisas,
tocarão aquilo que minha mão tocou,
os caminhos de nossas mãos irão se unir.

A lua de agosto rebrilha na cozinha
qual uma panela estanhada (isso por causa do que lhes
digo)

ilumina a casa vazia e o silêncio ajoelhado da casa —
o silêncio está sempre ajoelhado.

Toda palavra é uma saída
para um encontro muitas vezes obstado
e será uma palavra verdadeira se insistir no encontro.

 (De Parênteses [Paréntheseis], 1946-1947)

PANELA SUJA DE FULIGEM
(fragmento)


Perto de ti o aleijado antes de ir-se deitar retira a perna,
deixa-a num canto — uma perna oca de madeira —
é preciso que a enchas como se enche de terra um vaso
para plantar flores
como a escuridão se enche de estrelas
como pouco a pouco enche-se a pobreza de pensamentos
e de amor.

Decidimos que um dia todos os homens hão de ter as
duas pernas
uma ponte ditosa de um olhar a outro
de um coração a outro. Por isso onde estejas sentado
entre os sacos no passadiço de partida para o exílio
por trás das grades da seção de trânsito
perto da morte que não diz “amanhã”

entre milhares de muletas de anos amargamente aleijados
dizes “amanhã” e ficas sentado tranquilo e seguro
como um homem justo diante de outros homens.

Estas marcas rubras nas paredes podem ser de sangue
— tudo quanto seja rubro hoje em dia é sangue —
pode ser também o sol batendo na parede fronteira.

A cada crepúsculo as coisas ficam rubras antes de apagar-se
e a morte mais perto. Do lado de fora da cerca
estão as vozes das crianças e o apito do trem.

(...)

Nessas horas apertas a mão do companheiro teu,
o silêncio se enche de árvores
o cigarro partido ao meio corre de boca em boca
como lanterna a perscrutar o bosque. — Encontramos a
veia
que leva ao coração da primavera. E sorrimos.
Então as celas se tornam mais estreitas
e é mister pensares na luz de um campo com espigas de
trigo
e no pão sobre a mesa dos pobres
e nas mães que sorriem às janelas
para achares um lugarzinho onde esticar as pernas.

Sorrimos para dentro. Este sorriso o escondemos agora.
Um sorriso ilegal — como ilegal tornou-se o sol
ilegal a verdade. Escondemos o sorriso
como se esconde no bolso a foto da mulher amada
como se esconde a ideia de liberdade nos refolhos do
coração.

Aqui todos temos um céu e o mesmo sorriso.

Amanhã poderão matar-nos. Mas este sorriso
e este céu não nos poderão tomar.

MUDANÇAS

Levaram o arado para o campo;
trouxeram o campo para casa —
uma incessante mudança afeiçoou
o significado das coisas.

A mulher trocou de lugar com a andorinha,
sentou-se no ninho sobre o teto e pôs-se a gorjear.

A andorinha sentou-se ao tear e foi tecendo
estrelas, pássaros, peixes, flores e barcos à vela.

Se soubesses como é bela a tua boca
me beijarias nos olhos para que eu não visse.

[De Exercícios]

OPERÁRIO DA PALAVRA

Trabalhou a vida toda duramente, incondicionalmente,
com ardor, com arrebatamento, quase com fé na
imortalidade
e na sua própria imortalidade, decerto. Até que certa noite
soprou um vento repentino. A porta se fechou por si
mesma.
Viu as estátuas tombarem de frente. Compreendeu.
As palavras que escreveu assim, ano após ano,
enrijeceram; sentiu-as sob os dedos
como o pelo seco e neutro de um bicho morto.

No outro dia, contudo, retomou regularmente seu trabalho
e chegou a confundir imortalidade e morte, embriaguez
e olvido,
mas esclareceu com rigor o que é trabalho
entre futilidade e altivez. E as batidas
do relógio tinham o som de um tambor dentro da noite
ritmando a marcha de soldados sonolentos
entre duas batalhas.

[Idem]

ARTISTA ESQUECIDO

Um desenhista, durante a tarde, desenhou um trem.
O último vagão destacou-se do papel
e voltou sozinho para o depósito.

Exatamente nesse vagão é que estava sentado o desenhista.
[Idem]

DELEITE

A quadra da velhice, serenidade além da alegria ou da
dor,
e além da ansiedade. Ela conta seu tempo
sem impaciência —quase não o conta; distrai-se
com uma vespa que se aprofunda em seu zumbido,
com um copo cujo círculo diáfano voga no ar.

Quadra tranquila, ilimitada, após a responsabilidade e a
ação,
doce quadra silente qual uma mulher deitada
mulher que depois do prazer deleitosamente medisse na
palma da mão
o brando peso dos órgãos sexuais do homem.

DA “SUÍTE PEQUENA EM VERMELHO MAIOR”

Os dedos da mão
os dedos do pé
falos
entre os cinco dedos
quatro vulvas
— vinte e dezesseis —
antes de conseguires
fazer a soma
teu esperma jorra
nos lábios da estátua.
(De Poemas eróticos [Tà Erotiká], 1981)



[In POESIA MODERNA DA GRÉCIA, Seleção, tradução direta do grego, prefácio, textos críticos e notas de José Paulo Paes, Rio de Janeiro: Guanabara, 1986, pp. 195-204]


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