quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

Inácio Quinaud

ORAÇÃO AO GRANDE RIO

Sobre o teu dorso, São Francisco imenso,
arfa o vapor, gemendo, trepidante,
num arrojo sem fim que, às vezes, penso
ver lutar um anão contra um gigante.

Tuas águas brilhantes como espelho,
que a mão de Deus poliu para um Titã,
refletem, tontas, o clarão vermelho
do sol que espalha as luzes da manhã.

Galhos secos de palma e de mamona,
troncos fortes, capim, velhas ramagens,
fazem, sempre, aos magotes, mil viagens,
em ziguezagues pela tua tona.

E louco brames e sussurras manso,
na agonia medonha de um forçado,
fertilizando este sertão talado,
numa canseira que não tem descanso.

Segues, rindo e chorando, estranhos trilhos,
enchendo vales e cortando serras,
mas deixas, pronto, na aridez das terras,
o pão que mata a fome dos teus filhos.

No barranco das margens, vilarejos
branqueiam, tristes, o verdor da penha,
e labutam, calados, sertanejos,
em longas filas, arrumando lenha.

Longe em longe, na mata, eis as taperas,
de que nos contam esquisitas lendas,
aventuras sublimes e tremendas,
que se passaram em remotas eras.

Marinheiros, soturnos, em voz baixa,
sufocando, no peito, infinda mágoa,
a beber grandes goles de cachaça,
contam cousas terríveis da “Mãe d’Água”.

O Mistério e o Pavor voam, contentes,
batendo as asas, ao sabor do rio,
deixando atrás de si chocar de dentes,
c à flor da pele estranho calafrio.

Soprando o vento há uivos e gemidos,
preces de dor e gritos de revolta,
a matilha infernal que a Noite solta,
a chocalhar os seus grilhões partidos.

Foge o rio tremendo e os afluentes,
como filhos que voltam para o lar,
tombam, cegos, no rio, a soluçar
queixas distantes de distantes gentes. 

O lamento longínquo dos cocais,
que moram, longe, nas estreitas trilhas,
anda a correr, sem rumo, nestas ilhas,
rememorando os nossos ancestrais.

O tormento sem fim das gerações
que primeiro sulcaram estas águas,
vive agora nas grotas e nas fráguas,
na tristeza saudosa dos sertões .

Mas, esta dor das gerações primeiras,
rompendo a crosta da melancolia,
há de morrer e terminar, um dia,
no ribombo imortal das cachoeiras.

E o rio seguirá, de ora em diante,
levando a vida, por ai além,
na expectativa de um Supremo Bem,
que lhe premie o seu labor constante.

***

São Francisco, ó tu, que embalaste o sono
do meu berço risonho de criança,
dá-me paz, dá-me fé, dá-me esperança,
tu, que vives, também, ao abandono.

Quisera que meu corpo, liquefeito,
rolasse junto com as tuas águas,
despedaçando este montão de mágoas,
que oprime a mente c que me entulha o peito.

Não ser e não sentir, emoliente,
gigantesco, sublime, pardo, informe,
a distender o meu perfil enorme,
na paz segura de quem nada sente.

São Francisco, meu São Francisco-rei,
meu grande rio a que eu adoro tanto,
teu filho volta mergulhado em pranto ,
atrás de um sonho que eu aqui sonhei.

Se eu pudesse, também, banhar minha alma,
como banho meu corpo na corrente,
talvez que um dia me voltasse a calma
e a esperança para a minha mente.

E o tumulto incessante que me mata,
talvez cessasse, como cessa o grito,
do cão-de-caça, quando se desata
a peia atroz que o segurava, aflito.

E eu seguisse, de novo, já liberto
da mágoa infinda que carrego em mim,
na tentativa de alcançar um fim,
de que, às vezes, — quem sabe? — estive perto.

São Francisco, meu grande São Francisco,
lava meu coração, como costumas,
sob os raios do sol ou entre brumas,
lavar das margens os montões de cisco. 

Apaga no meu ser qualquer lembrança,
como quem sopra a chama de uma vela,
partindo tudo o que me prende a ela,
pois que ele é Luz e a Luz nunca se alcança.

Ouve o clamor medonho do meu ser,
já que um amor, como o meu, assim, ardente,
só a ti pode ter por confidente,
tu, rio imenso que me viu nascer.

Leva contigo, para o mar distante,
a mágoa oculta que te vim contar,
pois a dor que te conto, neste instante,
só cabe, toda, na amplidão do mar.

Na mesma unção de quem desfia um terço,
vim buscar, no teu seio, o Esquecimento,
ó rio que conheces meu tormento,
tu, que embalaste o sono do meu berço.

Não me deixes voltar cheguei,
alma plena de dor e de descrença,
faze que agora o meu orgulho vença,
meu Rio-Pai, meu São Francisco-Rei.

Ouve a prece dorida do teu filho,
que te vem procurar neste momento:
— mostra a meu coração o novo trilho,
onde se encontra o Grande Esquecimento!

[In OSCILAÇÕES, Pirapora, Minas, novembro de 46, pp. 183-187]



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