EM CORES
Eram olhos lindos. Um azul bem forte nas íris. E quando
estava feliz, parecia ainda mais forte. Tão azul quanto à tinta da caneta que
usei para escrevê-la tantas cartas. Eram olhos mais azuis quando sorria, e
também quando dava gargalhadas, mesmo tendo que fechá-los para gritar seus
altos risos. O azul ficava ainda mais forte quando estava séria. Os olhos
pareciam ficar a ponto de saltar das órbitas e atacar quem quer que a estivesse
contradizendo, ou provocando-a, ou tinha pegado alguma coisa sem sua permissão.
Eram turquesa quando estava focada, concentrada em fazer os outros felizes, ou
me fazer um carinho no cabelo. Ficavam mais parecidos com a cor de uma piscina
ao sairmos de férias, ou estarmos apenas tomando sol na varanda. Eram da cor do
mar quando jantávamos a luz de velas e da cor do céu ao comermos hambúrgueres
numa praça de alimentação qualquer. Ficavam mais claros ou mais escuros a
depender do clima. No frio eram sempre da cor de Netuno. No calor eram mais
para uma alvorada, poucos minutos antes do nascer do Sol. As quase
imperceptíveis listras de um lápis-lazúli nas íris apareciam quando estava com medo.
Eles brilhavam às vezes. Ao me verem e raras vezes ao verem
Bob — o cachorro da vizinha. E o sorriso dela? A gente conseguia prevê-lo
naqueles círculos azuis de seu rosto. Primeiro ela sorria com os olhos, para
então mostrar os dentes. Não me pergunte como isso podia ser possível porque eu
não saberia explicar. Era pura magia.
Com o passar do tempo, o azul começou a dar lugar ao cinza.
Quando chorava, era essa cor triste que eles tomavam. Doía no peito ver
lágrimas escorrerem de tão perfeitos olhos e ver o azul se entregando
facilmente àquela outra cor sem vida. Tempos depois ninguém mais conseguia ver
o céu naqueles círculos. Nem o mar. Nem piscinas. Eu não conseguia imaginar o
que podia combinar com aquela nova cor. Cinza lembra o pó, ou cidades grandes
violentas. Ou carbono. Isso faz algum sentido? Pelo sim e pelo não, carbono me
remete ao início da vida. E com isso podia me encher de esperança em ver aquele
cinza se transformar em azul novamente. Assim como o carbono que criou os seres
vivos para contemplarem a imensidão azul do mar e do céu se unindo no distante
horizonte... E aqueles olhos precisavam de azul. A nova cor não era bonita. Não
brilhava. Nem quando me via nem quando via Bob — sim, a vizinha ainda morava na
casa ao lado e o cachorro parecia ter uma vida mais longa que a maioria dos que
conheci.
Enfim, eu não queria mais encarar aquela fraca coloração de
morte.
Logo, já quase no fim, quando ela virou o olhar e me encarou
pela última vez, posso jurar que vi o azul que tanto me fazia falta. Cheguei a
acreditar que tinha visto um singelo sorriso nele. Mas antes de poder mostrar os
dentes, vi o azul se esvair, fazendo com que o cinza predominasse mais uma vez.
E então pude perceber que algo estava faltando nela, algo já a tinha deixado.
A alma? Talvez.
Emerson
Machado
é jornalista pela Universidade Tuiuti do Paraná e escreve reportagens para o
Diário da Amazônia. Tem vários livros infantis e juvenis publicados, entre eles
O Investigador de Sótãos — livro
selecionado pelo Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE 2011), do
Mistério da Educação. Também tem contos premiados em concursos literários e publicados
em antologias e revistas. Acredita que foi irlandês em uma vida passada e adora
viajar, ouvir histórias e fazer maratonas de documentários dos mais variados
gêneros. Ele não gosta de pipoca.
By Shawn McNulty |
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