terça-feira, 26 de maio de 2015

Antonio Gamoneda

Um animal oculto no crepúsculo vigia-me e apieda-se
de mim. Pesam as frutas corrompidas, fervem as câma-
ras corporais. Cansa atravessar esta enfermidade cheia
de espelhos. Alguém assobia no meu coração. Não sei
quem é mas compreendo a sua sílaba interminável.

Há sangue no meu pensamento, escrevo sobre lápides
negras. Eu mesmo sou o animal estranho. Reconhe-
ço-me: lambe as pálpebras que ama, leva na língua as
substâncias paternais. Sou eu, não há dúvida: canta
sem voz e sentou-se a contemplar a morte, contudo
não vê mais que lâmpadas e moscas e as legendas das
fitas fúnebres. Às vezes, grita em tardes imóveis.

O invisível está dentro da luz, mas, arde alguma coisa
dentro do invisível? A impossibilidade é a nossa igreja.
Em todo o caso, o animal nega-se a fatigar-se na agonia.

É ele que está desperto em mim quando durmo. Não
nasceu e, no entanto, há-de morrer.

Como as coisas, de que perdida claridade vimos?
Quem pode recordar a inexistência? Podia ser mais
doce regressar, mas
entramos indecisos num bosque de espinhos. Nada
há além da última profecia. Sonhámos que um deus
lambia as nossas mãos: ninguém verá a sua máscara
divina.

Como as coisas,
a loucura é perfeita.

[In Oração Fria, Antologia. Sel., trad., introd. e posf. de João Moita, Lisboa, Assírio & Alvim, 2013, pp. 237-239].



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