sábado, 2 de maio de 2015

Czesław Miłosz

ECONOMIA DIVINA
Não achei que viveria momento tão singular.
Quando o Deus dos trovões e cumes rochosos,
O Senhor dos Exércitos, Kyrios Sabaoth,
Humilhasse mais duramente os homens,
Permitindo que agissem como bem quisessem,
Deixando-lhes as conclusões e não dizendo nada.
O espetáculo não lembrava, com efeito,
O ciclo de séculos das tragédias da realeza.
Estradas sobre vigas de concreto, cidades de vidro e ferro fundido,
Aeroportos inda maiores que territórios tribais
De súbito careceram de fundamento e ruíram.
Não em sonho, mas à luz do dia, porque amputados de si
Duravam como só dura o que não deveria durar.
Das árvores, pedras do campo, até dos limões na mesa
Fugiu toda a matéria e seu espectro
Não era mais que o vazio, fumaça numa película.
Deserdado dos objetos pululava o espaço.
Toda parte era parte alguma e parte alguma, toda parte.
As letras dos livros se apagavam, vacilavam e sumiam.
A mão não lograva traçar o signo da palmeira, o signo do rio, nem o signo do íbis.
Num alarido de muitas línguas era anunciada a morte da palavra.
O lamento era proibido, porque só lamentava a si mesmo.
Acometidas de inexplicável tormento as pessoas
Despiam-se nas praças, para que sua nudez intimasse o juízo.
Mas em vão ansiavam por horror, piedade e fúria.
Pouco fundamentados
Eram o trabalho e o descanso
E o rosto e os cabelos e os quadris
E toda e qualquer existência.

[Tradução de Henryk Siewierski e Marcelo Paiva de Souza]

PREFÁCIO

Tu a quem não pude salvar
Escuta-me.
Tenta compreender este simples discurso porque tenho vergonha de outro.
Juro que em mim não existem as magias do verbo.
Te falo em silêncio como nuvem ou árvore.

O que me fazia forte, para ti foi letal.
Confundiste o adeus a uma época com o começo de outra,
A inspiração do rancor com a beleza lírica,
A força bruta com a forma perfeita.

Eis o vale dos rasos rios polacos. E uma ponte imensa
Furando a neblina branca. Eis a cidade quebrada,
E o vento arrasta o pio das gaivotas sobre o teu sepulcro
Quando eu estou falando contigo.

Que é a poesia que não salva
Nem as nações nem a gente?
Uma trama de mentiras oficiais,
Uma canção de bêbados cujas gargantas podiam ser cortadas de repente.
Uma leitura para meninas de colégio.

Que eu quisesse a boa poesia sem poder fazê-la,
Que eu tardiamente entendesse o seu fim redentor,
Isto e só isto é salvação.

Jogavam-se nas tumbas sementes de painço e papoula
Para nutrir os mortos que chegavam voando — pássaros.
Aqui deponho este livro para ti, ó antepassado,
Para que não voltes mais a visitar-nos.

[Tradução de Henryk Siewierski e José Santiago Naud]




Nenhum comentário:

Rosa Alice Branco

  A Árvore da Sombra A árvore da sombra tem as folhas nuas como a própria árvore ao meio-dia quando se finca à terra e espera co...