quinta-feira, 7 de maio de 2015

Marguerite Duras

7

Há um ano, eu lhe enviara as cartas de Aurélia Steiner. Escrevi daqui de Melbourne, de Vancouver, de Paris. Daqui, sobre o mar, deste quarto que agora se parece com você. Esta noite, revejo-o, você que eu não conhecia, sem dúvida em virtude das notícias da Polônia e da fome que me deixam, sim, você percebe, que me deixam entregue a mim mesma. Este quarto poderia ter sido o lugar onde nos tivéssemos amado, ele é então esse lugar, do nosso amor. Eu me sentia obrigada a lhe dizer isso algum dia, a seu e a meu respeito não posso me enganar. Eu lhe enviei as cartas de Aurélia Steiner, de parte dela, escritas por mim, e você me telefonou para dizer do amor que tinha por ela, Aurélia. Depois, escrevi outras cartas para ouvi-lo falar dela, de mim que a abrigo e a entrego a você como teria feito comigo mesma na loucura homicida que nos teria unido. Dei-lhe Aurélia. Dirigi- me a você naqueles momentos para que recebesse a carga de Aurélia nascente, você, para que estivesse ali entre ela e mim naquele momento, isso com a finalidade de ser quase a própria causa, percebe, como, do mesmo modo, você teria podido ser a própria causa de eu não escrever nada disso se, por exemplo, nos tivéssemos amado e tanto que essas palavras de Aurélia não tivessem vindo à luz, mas ainda somente as nossas, as de nossos nomes. Você é então a um só tempo a causa da existência e da não-existência de Aurélia Steiner em mim. Dou-lhe mais esta noite, sem nome, sem forma. Como também lhe dou Gdansk. Como também lhe dei os continentes judeus, Aurélia, da mesma maneira, como também lhe teria dado meu próprio corpo, eu lhe dou Gdansk. Como Aurélia, não posso guardar Gdansk só para mim, como escrevo Aurélia escrevo as palavras de Gdansk, e como Aurélia tenho que lhe enviar Gdansk acabada de sair de mim. Ei-la entre nós, contida entre nossos corpos. Olhe-a. Ela é iluminante como o desejo, sai da densidade das trevas, é nossa. Olhe esse despedaçamento do espírito diante da morte generalizada do proletariado, de seu assassinato, como ela está perto de nós, como sempre esteve perto de nós, tanto como a própria vida. Todos estão tristes por causa de Gdansk, salvo nós. A dor que foi nossa, ei-la então aqui, enfoque totalmente novo da conjuntura política. Ela é como um farol que iluminaria o grande monstro nauseabundo do socialismo europeu. Que os outros se calem. Gdansk somos nós. E é o real. E essa fé em Deus se confunde com esse real, essa prática proibida de Deus é justamente esse real, sendo o irreal a teoria deles proibindo essa suposta irrealidade de Deus. A tristeza dos estados- maiores é inevitável. Pois, veja bem, só se pode conhecer a felicidade de Gdansk num lugar, aquele que não está contaminado pelo poder. É impossível conhecer essa felicidade se se tem a menor parcela que seja do poder a gerenciar, a salvar. Gdansk, fomos nós que eles quiseram matar, é o bem de todos e ao mesmo tempo, ao mais alto grau, o de cada um. Eu o vejo, nós rimos. Hoje, o vento chegou com o entardecer, sem rajadas, sabe, regular, frio. Enxotou as pessoas, os pássaros, a cor. Eram seis horas da tarde. A luz já caía, o mar estava cinzento sob o céu desbotado e vazio, o mar estava como que trabalhando, já estranho, sim, já atarefado, fazendo vento, frio. O eixo de Antifer límpido, o horizonte impecável. E de repente esse vento que tudo tomava, e esse frio. Então as pessoas disseram, os primeiros a ousar: já é o fim do verão. As janelas do hotel se fecharam ao mar, e muito cedo se apagaram. O melhor, nesse caso, é dormir, sendo esse caso o da dificuldade de imaginar e o da aversão a saber. Não havia ninguém no caminho de tábuas além desse vento, ninguém na praia também. Durante as noites quentes, aqui houve muitas nesse mês de agosto, havia sempre gente passeando no caminho de tábuas, e na praia casais, eles iam se perder no espaço assustador do território do mar. Esta noite, não. Assim, ninguém escrevia no hotel, ninguém na cidade, em lugar nenhum , além de mim. As duas máquinas de escrever, sempre as mesmas, durante o verão, não se escutava seu ruído vindo do hotel. E o vento parou por volta das duas horas da manhã. Passagens, sempre, como urgências de tempo, e depois desaparecimentos totais, desmaios. Na varanda eu vi, o ar se tinha tornado imóvel e o mar outra vez adormecera. Pensei que eles jamais se apossariam de Gdansk, jamais, aconteça o que acontecer mais tarde. Jamais. Que éramos nós que a possuíamos. E apenas nós. Que eles estavam excluídos. E que sua tristeza também era feita da suposição de nossa felicidade. A noite era sonora e esquadrinhada pela ausência de olhares sobre seu esplendor obscuro. Escutavam-se como que sua textura, suas passadas. Eu estava ali para isso, para ver o que os outros ignorariam sempre, esta noite entre as noites, esta como outra qualquer, morna como a eternidade, a única inexistível do mundo. Pensei na concomitância do menino e do mar, na sua diferente parecença, arrebatadora. Disse-me que se escreve sempre sobre o corpo morto do mundo e, da mesma maneira, sobre o corpo morto do amor. Que era nos estados de ausência que a escrita se abismava para não substituir nada do que havia sido vivido ou supostamente vivido, mas para registrar o deserto por ele deixado. A calma da noite se seguia ao vento, mas essa calma não havia sido criada pelo vento ao se retirar, era outra coisa, era também a manhã que se aproximava. As portas da casa de Aurélia Steiner estão abertas a todos, aos furacões, a todos os marinheiros dos portos e no entanto nada acontece nesse lugar da casa de Aurélia além desse deserto da escrita, do registro incessante desse fato, esse deserto. Falo da totalidade do luto dos judeus carregada por ela como seu próprio nome. Essas pessoas que falavam de Montaigne pela televisão, vocês ouviram? Eles diziam que Montaigne havia deixado prematuramente o parlamento de Bordeaux, seus amigos, sua mulher, seus filhos, para escrever. Ele queria refletir, diziam eles, e escrever sobre a moral e a religião. Não vejo nenhuma decisão desse tipo na reclusão de Montaigne, ao invés de vê-la como racional vejo nela loucura e paixão. Foi para continuar a viver depois da morte de La Boétie que Montaigne começou a escrever. Não são coisas da moral. E se, como dizia Michel Beaujour, o único a ter ousado, Essais não é completamente legível e ninguém nunca o leu por inteiro, como a Bíblia, talvez menos ainda, é porque ele nunca se evade da singularidade de uma relação particular, eternizada aqui pela morte, lá pela fé. Se Montaigne tivesse escrito sobre sua dor, esta teria arrastado toda a escrita do mundo. Ora ele só escreveu como para não escrever, não trair, justamente escrevendo. De tal forma nos deixa sem ele, maravilhados, plenos, nas nunca entregues com ele à sua liberdade. Sabem, esta manhã, o tempo estava de novo esplêndido, as praias cobertas de pipas, de crianças, de famílias extenuadas pela vida, sempre tristes, percebem?, sempre. As colônias de férias atravessaram isso tudo, cantavam esta manhã, sempre essa indecifrável canção. E como sempre houve outras crianças que os seguiram, porque nada, à primeira vista, os distingue dos órfãos e porque os órfãos, como as crianças perdidas, exercem sobre as crianças que têm família e amor a atração incomparável do abandono. Sim, havia um menino com os olhos cinzentos. Perto dele, a jovem. De vez em quando ele catava coisas na praia e ela esperava. E outras monitoras reuniram todas as crianças, sempre antes daqueles dois, e ela lhes disse: vamos cantar. O menino dos olhos cinzentos sentou-se perto da jovem. E todo mundo cantou, salvo o menino e a jovem. As monitoras pediram ao menino que cantasse com os outros e ele não respondeu. Então a jovem disse que era porque ele não podia cantar com os outros. Não se entendia o que a jovem estava dizendo. E se queria que fosse o menino que respondesse. Por que você não quer cantar? Então o menino olhou para aquelas pessoas que lhe faziam perguntas, depois para as outras crianças, como se despertasse de repente, não estava tímido, e sim com um sentimento de surpresa um pouco assustada e sempre essa ligeira crispação do rosto, a emissão das palavras rompeu a imobilidade dos traços, e ele disse: eu não quero cantar. Hesitou- se, foi dito à jovem que ela protegia demais esse menino. Ela respondeu que não o protegia. Foi- lhe dito que a singularidade de uma criança nunca devia ser encorajada e sim, ao contrário, ser submetida à regra geral, que ela devia saber disso. A jovem respondeu que ela não compreendia o que lhe era dito. Foi-lhe dito que fosse embora com o menino, já que este se distinguia a tal ponto de seus colegas. Então eles foram embora, sabem, para o outro lado do molhe, em direção às colinas de argila e dos rochedos negros. E ali, ela cantou para o menino que na clara fonte ela foi passear e que ela nunca o esqueceria, e o menino escutava a letra. A maré estava baixando e naquele lugar entre as colinas e o mar há um terreno plano, uma larga faixa que conserva a água e que fica todos os dias durante muito tempo como um espelho brilhando. E a jovem falou ao menino, enquanto eles caminhavam sobre o espelho, sobre uma leitura recente, ainda ardente, da qual não se podia desligar. Que se tratava, dizia ela, de um amor que esperava a morte sem provocá-la, infinitamente mais violento que se realizado pelo desejo.

(In O Verão de 80, tradução de Sieni Maria Campos, Rio de Janeiro: Record, s/d, pp. 61-68)


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