Os teus cabelos de aipo, perfumados,
solta para mostrar tua beleza
e expulsa a obrigação da mente presa
às palavras do oráculo afamado.
Não há outra maneira. De bom grado
sorri. As portas de Argos, como vês, a
via fatal te trouxe. Tua empresa:
rasgar o ventre onde foste gerado.
Ninguém te lembra aqui. Portanto esquece
quem és, e à encruzilhada comparece
da áurea cidade. Ali hás de fazer,
como se um outro fosses, teu dever.
Que importa? Vão contigo, aonde fores,
o sangue de tua mãe e teus próprios horrores.
[De Poemas]
O GUIA
Não sou a semente do Acaso,
da nova vida criador.
Sou filho da Necessidade,
maduro filho do Rancor.
Não foi das nuvens que desci
nem fui mandado por um santo
Pai para dar-te lenitivo,
escravo que padeces tanto.
Potências do céu, serafins,
lírios, pássaros, orações —
nada disso. A mim só assistem
vossos irados corações.
Eu, carranca de uma sereia
erguida à proa do navio.
Sobre mim se abatem tormentas,
fustiga-me o tempo bravio.
Dos séculos tanta vergonha
encheu-me o coração, a mente,
que minhas mãos aparelhou
de relâmpagos ignescentes.
Eu não sou um, eu sou milhares!
Não só os vivos é que eu vejo
atrás de mim — também os mortos
seguem o meu negro cortejo.
E me bendizem, aos milhares,
os que inda não têm existência,
põem sobre mim suas espadas
e as inclinam em reverência.
Ouvi como trazem os ventos
as vozes de milhares de anos.
Nas minhas palavras ecoam
todos os tormentos humanos.
Oh! como elas correm no vento
e como as repetem, exangues,
negros abismos, tumbas negras,
rios carregados de sangue.
E eis que a irmandade do Trabalho
lá surge, e os homens afinal
são unidos por duas mãos:
as da Amizade universal.
[Idem]
AS DORES DA VIRGEM SANTÍSSIMA
Onde esconder-te, filho meu, que não te encontrem os
malvados?
Em qual das ilhas do Oceano, em qual dos picos desolados?
Não te ensinarei a falar para que contra o mal te eleves.
Sei que terás um coração tão doce, tão afeiçoado,
que nos laços da cólera estarás te retorcendo em breve.
Terás um corpo delicado, terás os olhos azuis.
Vou te guardar do mau-olhado, te guardar do tempo ruim,
do primeiro susto ao despertar do juvenil ardor.
Não nasceste para as lutas, não nasceste para a cruz.
És um pequeno senhor, não um escravo ou delator.
Levantarei de noite e na ponta dos pés, devagarinho,
me inclinarei para ver-te respirando, passarinho.
Amornarei teu leite, a camomila cheirosa,
e mais tarde, da janela aflita, te verei a caminho
da escola: numa das mãos a lousa, na outra o lápis de
ardósia.
E se alguma vez o Senhor do céu com a verdade — brilho
de raio — te ferir a mente, não digas nada, filho.
Os homens não podem, feras, o brilho da luz suportar.
Só a verdade do silêncio é cristal; as outras, vidrilho.
Se nasceres mil vezes, mil vezes te irão crucificar!
LAMENTO DOS ESCRAVOS
O primeiro escravo
Os olhos com um brilho de água fria,
um rostinho de seda, macio. Entre
catorze, dezesseis anos teria.
Onde está agora? Terra, no teu ventre!
O segundo escravo
Rosas embaixo, um mar; a sebe só
de madressilvas, rio que transborda.
Onde estarão agora? Cinza e pó.
E nas alturas uma lua morta.
O terceiro escravo
Nem começo nem fim, tampouco meio.
Céu, mar, terra: extensões ilimitadas.
A tudo prende uma férrea cadeia.
Vazio o mundo; dentro ou fora: nada.
Todos juntos
Silêncio em tudo. O vento silencia.
O sol está cego: olha mas não vê.
Não se distingue mais a noite e o dia.
O fim do mundo, a profecia crê.
Mas quem virá nos salvar? O Oriente?
O Ocidente? Um deus grego ou um deus bár-
baro? Há um mundo novo à nossa frente?
Ou o velho mundo é que vai voltar?
[In PAES, José Paulo (seleção e tradução). Poesia moderna da Grécia. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986. pp. 115-119].
KÓSTAS VARNÁLIS (1884-1974) nasceu em Pírgos, Bulgária, onde fez o primário e o secundário. Cursou filosofia na Universidade de Atenas. Graduado em 1908, voltou à Bulgária para ali lecionar língua e literatura grega; mais tarde, fixou-se definitivamente na Grécia, a princípio como professor de ginásio. Em 1919, ganhou uma bolsa de estudos para a Sorbonne e em Paris familiarizou-se com o marxismo, ao qual aderiu intelectual e politicamente. Durante a ditadura de Pángalos, foi demitido do cargo de professor de literatura grega moderna numa faculdade de Atenas por causa de suas atividades esquerdistas (1925). Dedicou-se a partir de então exclusivamente ao jornalismo, à literatura e às traduções. Além de poesia, escreveu biografias, ensaios, livros infantis e contos, e traduziu em verso, para o grego moderno, obras teatrais de Aristófanes, Eurípedes, Molière, Corneille e Musset, as quais foram encenadas em teatros da Grécia. Recebeu em 1958 o Prêmio Lênin da Paz.
Ilustração: Detalhe de Orestes perseguido pelas Fúrias, , 1862
Oil on canvas, by Adolphe William Bouguereau
(1825–1905)
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