terça-feira, 2 de junho de 2015

Dora Ferreira da Silva

DEPOIS
Sim, era o tempo. Depois — inútil consultares o relógio —
o tempo não era.Tudo pleno e íntegro: obedecíamos a um
[milagre
mais simples que as coisas usuais. A labareda encontrou o
[seu fiel
cessando de crepitar. As emoções se extinguiram
na lareira que não fora acesa em noite de verão.
O calor das coisas a si mesmo se bastara a ponto
de adormecer. E a orquestra ali estava suspensa depois do
acorde final, os músicos ausentes
algumas folhas caídas no chão de madeira morta.
O perdão da seiva antiga recendia a música de violinos
e flautas. Persistente floresta de sons, a música!
Os acordes da alma ainda ecoavam — do insípido à
[exaltação.
Persistente floresta, a alma. E tu misericórdia
há onde caibas? Exorbitas instrumentos partituras:
música pura. Silêncio que nos acolhe
e disso faz um ramo de primavera.

APAGADAS AS LUZES
Ônibus de luzes apagadas
de Volta Redonda a Barra do Pirai.
O motorista sorriu
o tempo de um adeus
e o ônibus seguiu —
barco sacolejante de operários.
Faróis de automóveis (em sentido contrário)
acendiam-lhes os olhos. Muito o sono
e a noite cresceu. Evolavam-se
os corpos de suor e incenso.
No altar do silêncio brilhava
a hóstia da comunhão.

Segui a via que liga Volta Redonda
a Barra do Pirai
com a legião cansada
dos anjos daquele dia.

ALÉM
Não me explicas
não te explico
o milagre do contato
que é de alma e é carnal
que é do espírito abissal
tudo somando o igual.
Sinto o frêmito do vento
nas plantas do beiral
desta casa provisória.
Não há linhas divisórias
que nos digam quem é qual
por tão próximos — não há espaço
para o abraço
para o ai!
Andando em duas direções
transpusemos nossa essência
um é o outro
e o círculo no entanto
determina eterno encontro.
Sem assombro dou-te um beijo
o realejo da infância
é o fundo musical.
Valha-nos Deus!
Vamos chorar? Vamos sorrir?
O agora é o por vir
que empurra e enterra o antes
para nova floração.
Só não passa nem transita esse
doido coração
não é meu
não é teu
está nu de possessivos
a imperecível carnação.
Sorrimos o mesmo sorriso
diante das megapalavras
somente cativos do Nada.
E eternamente calamos.

[In Poesia Reunida, Rio de Janeiro, Topbooks, 1999, pp. 354-355]

Randall David Tipton


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