sexta-feira, 11 de setembro de 2015

Henriqueta Lisboa

ROMANCE DO ALEIJADINHO
Antônio Francisco Lisboa
no catre de paralítico.
Antônio Francisco Lisboa
está nos últimos dias.

—Sobre meu corpo, ó Senhor,
põe teus divinos pés.
Ao penitente perdoa
ira, luxúria e soberba.

Os grossos lábios murmuram
secos, gretados de terra.
Tateiam os olhos cegos
as moedas falsas da luz.
Estende os braços, estende-os,
não tem mãos para sentir
a carnadura de estrelas
de sua pedra vencida.
E anseia substâncias plásticas
sob dedos renascidos.

—Mais que volutas, rosáceas,
mais do que as flamas e as curvas
flexuosas dos meus delírios,
em segredo amei as virgens
de leves túnicas brancas,
formas essenciais do sonho
que fez de meu corpo uma alma.

E mais do que os rijos músculos
desses guerreiros que atroam
nuvens e ares com trombetas,
amei a graça e a doçura
dos anjos, dos ruflos de asas,
a delicadeza em flor
das crianças que não me amaram.

Queda um momento perplexo:
de um lado o mar infinito
de vagas que se desdobram
verdes, verdes, sempre verdes,
e seus passos firmes de homem
caminhando, caminhando,
sobre as ondas caminhando.

À esquerda a floresta, o abismo:
fulvas serpentes se enroscam
nos troncos dóceis dos cedros
atravancando a passagem.
E recorda as vezes tantas
em que seus pés se enredaram.

—Filtros, filtros de cardina,
filtros, prodigiosos filtros!
Do catre imundo e revolto
Joana Lopes se aproxima:
—Que queres tu, Pai Antônio?

—Para onde foi teu marido,
filho ingrato que gerei?
—O mundo levou teu filho
mas uma filha te deu.

—Januário, onde está Januário?
É meu escravo ou não é?
—Januário de tantas mágoas
descansa no cemitério,

— Ganhei dinheiro às carradas
e minha arca está vazia.
—Eras amigo dos pobres,
são pobres os teus amigos.

—Quero a Bíblia, a minha Bíblia!

Mãos compassivas depõem
no peito coberto de úlceras,
restos do sagrado livro.

—Sobre meu corpo, ó Senhor,
põe teus divinos pés.

O moribundo sem força
move os lábios num sussurro.

E da distância dos séculos
anjos e virgens o escutam.

[In Nova Lírica, Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1971, pp. 47-49]






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