terça-feira, 6 de outubro de 2015

Percy Shelley

EPIPSYCHIDION

Anjo celeste, tu, excessivamente belo para seres humano,
ocultando sob uma forma luminosa de Mulher
tudo aquilo que é em ti insustentável
vindo do amor, da imortalidade e da luz!
Suave bênção para os que foram amaldiçoados!
Velado esplendor sobre este universo sombrio!
Tu, lua além das nuvens! Tu, forma viva
entre os mortos! Tu, estrela sobre as tempestades!
Maravilha, e beleza, e terror! Tu,
harmonia da arte que anima a natureza! Tu, espelho
onde, como no esplendor do Sol,
todas as formas aparecem gloriosas ao teu olhar!
Sim, mesmo nas obscuras palavras que te escondem
agora, brilha um relâmpago desconhecido.
Peço-te: vem apagar deste triste poema
tudo o que nele é erro e só mortalidade.



Esposa! irmã! anjo! guia dum Destino
cujo curso ignora as estrelas! Tu, que eu amei
tão tarde, para seres demasiado cedo adorada
por mim — que só nos campos da Imortalidade
devia o meu espírito ter-te venerado,
divina presença num lugar divino,
ou acompanhar-te, fielmente, sobre esta terra,
sombra do teu ser, desde a sua origem.
Mas não como sucede agora, amor, se já pressinto
que se fecharam as fontes do meu próprio coração
com o fim de se manterem puras e brilhantes as suas ondas
para ti, porque nessas lágrimas encontras a alegria.
Não somos, tu e eu, como notas de música
que existem umas para as outras, embora tão diferentes,
— diferença sem dissonância, capaz de gerar
aqueles sons tão suaves, que fazem vibrar as almas
como folhas, ao estremecerem sob a mesma brisa?

Tua sabedoria fala em mim, e ordena-me que ilumine
os escolhos onde se destroçam os grandes corações:
nunca, nunca me senti preso a essa seita poderosa
que julga que cada um devia escolher
entre a multidão só uma amante ou um amigo,
e tudo o resto, apesar da beleza e da sabedoria,
seriam votados a um frio esquecimento, pois assim o decide
a nossa moral, e que seja essa a penosa estrada
atravessada pelos cansados passos dos tão pobres escravos
que seguem, entre os mortos, a caminho do seu lar
pela larga, ampla vereda do mundo, e assim
presos a um só companheiro — inimigo e com ciúmes talvez—,
fazem a mais triste e longa das viagens.

À argila e ao ouro não se compara o verdadeiro Amor,
porque dividi-lo não é torná-lo menos poderoso.
O Amor é como o entendimento, que se torna brilhante
ao contemplar múltiplas verdades; é como a tua luz,
Imaginação!, que desde a terra e o céu,
e das profundidades da fantasia humana,
igual a mil prismas e espelhos, enche
o universo de gloriosos raios, e destrói
o erro, esse verme, com as inúmeras setas solares
da própria luz que reverbera: ah! como são estreitos
o coração que ama, o cérebro que contempla,
a vida que se consome, o espírito que gera
um único ser, uma só forma, e assim edifica
um sepulcro para toda a sua eternidade.



Existia um Ser que o meu espírito
tantas vezes encontrava, lá no alto, entre os sonhos
ao despontar a manhã clara e dourada da juventude;
sobre as ilhas encantadas, com luminosas clareiras
entre montanhas maravilhosas, e as cavernas
do sono divino; sobre a ondulação aérea
de sonhos cheios de prodígio, cujo oscilante chão
suportava os seus ligeiros passos, e numa margem
imaginada sob a pálida falésia de qualquer promontório,
— esse Ser vinha ao meu encontro, vestido de tal esplendor
que se tornava para mim invisível. Com a solidão,
a sua voz veio até mim dos bosques sussurrantes,
chegou com o canto das fontes, com o profundo aroma
das flores, como se os próprios lábios do sonho
murmurassem os suaves beijos que as adormeceram
e, na atmosfera enamorada, apenas falassem do seu nome;
chegou com o maior ou menor rumor das brisas,
com as chuvas que caem de todas as nuvens,
com a harmonia dos pássaros do estio,
com todos os sons, e o silêncio. Nas palavras
de poemas antigos e de lendas — na sua forma,
sonoridade, cor —, em tudo o que pacifica aquela Tempestade
que sufoca o passado com o presente destruído,
nesta suprema filosofia, cujos indícios
são o destino que conduz a nossa dolorosa vida
a um glorioso, ardente martírio,
ficava o seu espírito, a harmonia da verdade.

Erguia-me das cavernas onde sonhava a minha juventude
e encaminhava-me, com sandálias de fogo,
em direcção ao astro do meu único desejo,
voava perturbado como uma falena, cujo movimento
é igual a uma folha morta numa luz crepuscular
quando vai procurar junto de Vésper
uma morte luminosa, um radioso sepulcro,
como se fosse a lâmpada duma chama terrestre.



Enfim, numa floresta obscura, chegou essa Visão
que eu perseguira através do sofrimento e da vergonha.
Através dos ermos invernosos e cheios de espinhos
emanava dos seus gestos um matutino esplendor,
e da sua presença a vida estendia,
sobre a terra desolada, os ramos nus e mortos;
estava o sou caminho atapetado e coberto
de flores tão amenas como o amor nascente;

e a música que vinha da respiração expandia-se
como a luz—porque eram todos os sons penetrados
pelo débil, tranquilo, suave espírito desse som;
os ventos agrestes apaziguavam-se à sua volta;
perfumes ardentes e puros desciam já pelos cabelos
e dissolviam o frio entorpecedor na atmosfera gelada.
Doce como uma encarnação do Sol, quando a sua luz
se transforma em amor, essa Aparição
deslizou até à caverna onde eu repousava,
chamando a minha alma, e a argila dos sonhos
foi erguida pelo que na Terra sonhava,
como o fumo vindo do fogo, e entre o brilho da sua beleza
permaneci e senti que a aurora da minha longa noite
acabava por me inundar com uma viva luz:
sabia que era a Visão que procurara sempre
durante tantos anos—sim, que encontrara Emília...



Emília,
um barco flutua agora no porto,
o vento paira sobre o cume das montanhas;
fica um sulco sobre a superfície azul do mar,
mas nenhuma quilha o atravessou ainda;
imobilizam-se as alcíones à volta das ilhas sem espuma;
— o traiçoeiro oceano abandonou os seus ardis
e, alegres, os marinheiros sentem-se ousados e livres.
Diz-me, ó meu amor, se queres partir comigo?
É o nosso barco um albatroz, cujo ninho,
na púrpura do oriente, lembra um Éden longínquo;
permaneceremos entre as suas asas, enquanto a Noite
e o Dia, a Tempestade e a Calma, nossos servidores
despercebidos, não se cansam de perseguir o seu voo,
seguindo o mesmo trilho pelo mar infinito.
Sob os céus da Jónia, encontra-se uma ilha
tão bela como um dos destroços do Paraíso,
e, porque os seus portos não são seguros,
ficaria solitária se nesse lugar não vivessem,
simples e cheios de ânimo, inocentes e corajosos,
alguns pastores apenas, somente os que nasceram
ali, onde recebem do ar elísio claro e brilhante
o derradeiro espírito da idade de ouro.
Azul, cinge o Egeu este lugar eleito,
com um contínuo rumor, e luzes, e espumas,
beijando as areias finas, a brancura das cavernas;
e os ventos que vagueiam ao longo dessas margens
ondulam docemente, como as próprias ondas.
Aí existem densos bosques habitados por imagens silvestres
e fontes, pequenos lagos, arroios tão cristalinos
como um diamante elementar ou o ar sereno da manhã;
ao longe, as sendas musgosas de cabras e veados
(que o rústico pastor segue só uma vez por ano)
conduzem a clareiras, cavernas, átrios, retiros
cercados de hera e iluminados por cascatas,
cujo rumor, jamais interrompido,
acompanha em pleno dia o canto dos rouxinóis;
todos os lugares estão povoados por suaves ventos;
o halo leve e claro que cerca esta ilha
é penetrado pelo aroma dos limoeiros floridos
que flutua—névoa cheia de invisíveis chuvas—,
caindo sobre as pálpebras como um sonho ligeiro;
e através do musgo despontam violetas e junquilhos,
que trespassam o cérebro com as setas do seu aroma
até desfaleceres num sofrimento deleitoso.
E todo o movimento, aroma, frémitos, luz
reúnem-se a esta música profunda
que é uma alma no interior da alma — talvez
a ressonância dum sonho por nascer. — Ilha
entre o Firmamento, o Ar, a Terra e o Mar,
suspensa como um berço nesta tranquilidade luminosa;
radiosa como a errante estrela de Lúcifer,
no Éden, banhada pelo oceano azul do ar matinal.
É um lugar eleito. A fome e as pragas,
os terramotos, a peste ou a guerra não aparecem
no cume dos seus montes; abutres cegos
afastam-se dali, no seu fatal caminho:
tempestades aladas, entoando ao longe os seus salmos
de trovões, deixam abismos azuis de serenidade
sobre esta ilha, ou choram como o orvalho
que renova constantemente nestes campos e bosques
a sua imortalidade verdejante e dourada.
Erguem-se do mar e desprendem-se do céu
brumas transparentes, serenas, iluminadas;
e véu após véu, quantos prazeres ocultam,
devassados pelo Sol, a Lua, os ventos,
até que em sua formosura a ilha, como noiva
radiosa na nudez, amor e juventude,
se ruborize e vibre no excesso de si mesma.
Todavia, como uma lâmpada sepultada, arde
uma Alma no coração desta ilha deliciosa,
átomo de Eternidade, cujo sorriso desperta,
e, invisível, poderia ser apenas adivinhado
sobre negros rochedos, ondas azuis, florestas verdes,
por entre os seus espaços entreabertos e vazios.
Mas o mais maravilhoso, naquele lugar deserto,
é uma habitação isolada.



Dela, pouco parece pertencer à arte humana
mas ser antes obra de Titãs, porque recebeu
a sua forma no Coração da Terra, e assim surgiu
do seio das montanhas, das pedras viventes,
erguendo-se em cavernas luminosas e altas.
A ornamentação antiga e cheia de sabedoria,
que ficou apagada, é feita agora
de hera ou vinha-virgem, que entrelaçam
a profusão das suas hastes sinuosas;
flores de trepadeiras iluminam com suas gemas
de orvalho as salas obscuras e, ao morrerem,
o céu desponta através da fria teia do seu rendilhado
com o vestígio do luar, ou átomos de estrelas
ou fragmentos da intensa serenidade do dia,
desenhando mosaicos sobre o seu chão de Paros.
E, dia e noite, ao longe, vistos das altas torres
e terraços, o Oceano e a Terra parecem
dormir nos braços um do outro, e sonham
ondas, flores, nuvens, rochedos, bosques—tudo
o que lemos nos seus sorrisos, e é a realidade.

Possa esta casa pertencer-nos, e quando os anos,
como folhas, acumularem sobre nós o nosso declínio
sejamos ambos o próprio dia que paira,
a alma desperta desta ilha eleusina,
conscientes e inseparavelmente unidos. Entretanto,
ao despertar, erguer-nos-emos e iremos juntos
sob a abóbada do ar azul da Jónia,
e vaguearemos pelos prados; ou subiremos
às montanhas cobertas de musgo, onde o céu
com serenos ventos se inclina ao encontro da amada;
ou passearemos, onde o litoral coberto de seixos,
sob os beijos apressados e tímidos do mar,
se agita e brilha, como se fosse em êxtase,
— possuidores e sendo possuídos por tudo o que existe
no interior desse calmo círculo de felicidade,
e um pelo outro, até se transformar o amor e a vida
no mesmo ser; ou, ao meio-dia, iremos
onde a brancura de uma antiga caverna parece ainda conter
o luar, quando expirou a noite adormecida,
sem que aí o dia penetre e amanheça;
véu para o nosso isolamento, tão denso como o da noite,
onde possa um sono tranquilo apagar os teus olhos inocentes;
sono, fresco orvalho dum amor lânguido, chuva
que extingue os beijos e os faz renascer.
E nós conversaremos, até que a melodia do pensamento
seja suave para as nossas vozes, e morra
em palavras, para que reviva no olhar, como setas
a vibrarem no interior do nosso coração silencioso,
até se conjugar a sua harmonia com o silêncio total.

SOBRE PERCY SHELLEY

[In POESIA ROMÂNTICA INGLESA, prefácio e tradução de Fernando Guimarães, Lisboa, Relógio D´Água, 2010, p. 59-71]

by GUSTAVE COURBET



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